terça-feira, novembro 29, 2005

O MEU AVÔ

faria hoje 97 anos se fosse vivo. Em Estremoz toda a gente o conhecia, (e toda a gente ainda se lembra) do sr. Prudêncio. A loja de pronto-a-vestir onde trabalhava e da qual era dono de um terço tinha (e tem) o seu nome. Toda a gente de Estremoz conhece a loja do sr. Prudêncio. Ele trabalhava ao balcão, gostava de atender as pessoas, de falar com elas, e estou certa de que toda a gente preferia ser atendida por ele. Trabalhava tanto ou mais que qualquer empregado, sábados incluídos, não tirava mais férias do que qualquer outro empregado. Não me lembro de o ver faltar ao trabalho, também não me lembro de o ver doente. E trabalhava por gosto, para ele era um prazer estar atrás do balcão.

Em pequenina, adorava ir à loja do meu avô. Entrar por ali adentro e meter o nariz em todos os cantos (aquela casa era cheia de recantos misteriosos). Gostava de me esconder atrás das roupas penduradas nos charriots, ao longo de um inteminável corredor. Mas o que me fascinava era o cubículo das provas. Havia dois espelhos altos, colocados em duas paredes opostas, de modo que a nossa imagem multiplicava-se numa sucessão interminável, até ao infinito. Eu ficava assombrada com aquela multidão de mim mesma que me espreitava do outro lado do espelho.

O meu avô tinha um espírito muito jovem. Era muito bem disposto e estava sempre na brincadeira. Fazia-nos rir muitas vezes. Em pequena ele simulava muitas vezes arrancar-me o nariz: e depois mostrava-mo, escondido entre os dedos das suas mãos. Eu gritava sempre, porque não gostava nada daquela brincadeira!

O meu avô cantava no Orfeão de Estremoz. Tinha uma voz bonita, suave. Lembro-me de o ver cantar numa Igreja, em Estremoz, na única actuação do Orfeão a que assisti, já ele estava doente mas ainda bem. A igreja estava cheia, havia flores a enfeitar as paredes, e as vozes ecoavam no espaço húmido.

As falhas de memória frequentes e alguns comportamentos suspeitos conduziram a um diagnóstico pouco conhecido na altura: Alzheimer. Sabíamos que era irreversível, sabíamos que era incurável. Não sabíamos quanto tempo tinhamos. Mas sabíamos que ia ser longo. E doloroso.

Mesmo assim, trabalhou até à última, com uma obstinação forçada, já não conseguia fazer as contas e por último eram as pessoas, com pena dele, que o ajudavam. Ficava confuso, envergonhado, frustrado, mas nunca desistiu. Lutou com todas as forças da parte ainda sã do seu cérebro contra aquele monstro invisível.

Dos seus últimos anos recordo uma infinidade de cuidados médicos a um corpo cada vez mais velho, cansado, irreconhecível de dia para dia. Por último apenas deitado na cama, o rosto inexpressivo. Só o olhar ainda mexia e perscutava o espaço à sua volta com uma intensidade e uma curiosidade quase infantis. E aquele dia em que o visitei, depois de algum tempo sem o ver, em que já não me reconheceu, os seus olhos já não se fixavam nas coisas nem nas pessoas, mas sim num ponto algures entre este mundo e o outro.

Há muitos anos atrás, ainda era criança, fiz um cachecol com lã castanha para lhe oferecer neste dia. Escrevi uma carta com a ajuda da minha mãe, em que dizia qualquer coisa como: "este cachecol é a tua prenda, quando me perguntavas o que eu estava a fazer, eu dizia que era um cachecol para o gato, afinal era para ti!" E acrescentava: "avô, eu quero que vivas até aos 100 anos, até aos 200, até aos 1000 anos!"

12 comentários:

Tilangtang disse...

A tua prece foi ouvida.
Ele continua vivo.
Em ti.

Paulo Silva disse...

OLÁ AMIGA. LINDO TEXTO ESTE QUE SE LÊ AQUI.
RECODAR OS NOSSOS AVÓS...
LINDO...LINDO...
NÃO ME SAEM OUTRAS PALAVRAS.
FELICIDADES.
PAULO SILVA.

papu disse...

As vossas palavras são preciosas... obrigada :*)

Alex: nada de pedir desculpa! Podes falar comigo sempre à vontade sobre todos os assuntos! Claro q a morte é um assunto difícil... mas acho importante falarmos sobre ela às crianças, qd elas perguntam. Afinal, faz parte da vida, por muito q nos custe...

Muitos beijinhos

papu disse...

oh Ana! Muitos parabéns! :)))

E nunca conheceste nenhum avô? Mas q triste, não consigo imaginar... :(

Muitas beijokas e obrigada! :)

Anónimo disse...

Um texto muitíssimo bonito. Tenho a certeza que o teu avô está sempre ctg.

Pim disse...

Sobre o meu avô:
Não sabia ler nem escrever, mas sabia mais do que mil homens juntos, sobre história, sobre natureza, sobre a vida.
Este era o meu exagero de criança! Mas era inevitável: afinal, ele era um dos meus melhores amigos. E vinha todos os anos de Trás-os-Montes, só para o meu aniversário. Não conheço muita gente que fizesse isso por mim. Tenho muitas saudades dele, mesmo!!!

Beijinhos grandes, papu :) Muito bonito o que escreveste sobre o avô Prudêncio

papu disse...

Pim: os avós deixam mesmo muitas saudades... e são tão especiais! Gostei de ler sobre o teu, obrigada pelas tuas palavras! :)

Formiguinha, obrigada também. Um beijo para todos vocês. :)))

Anónimo disse...

...Acho que nunca li nada que descrevesse tão bem o nosso avô e a sensação que era andar por aquela loja... Também a mim o que mais me fascinavam eram os ditos espelhos da cabine de provas!!!...

Obrigada Papu!

Um grande beijinho
Sofia

papu disse...

Olá Sofia! :)

Estou a ver q já andas por aqui a passear... :)
É bom recordar aqueles tempos, não é? Obrigada pelas tuas palavras. Um grande beijinho também, e um especial para a Maria.

sm disse...

Já andava há uns dias para vir ler este texto... desculpa, mas a volta ao trabalha dificulta as incursões na blogosfera... Finalmente, hoje!!! e ainda bem, enquanto o lia arrepiei-me toda, quando acabei de ler estava comovida, acho que se fosse um pouco maior entrava m chorinho :). Que bom teres tantas e boas recordações do teu avó, eu tenho umas saudades intermináveis dos 2 que conheci...

***
PS Estás melhor????

papu disse...

Olá Sandra! :) Estou melhorzinha, sim, ainda a recuperar...
Obrigada pelas tuas palavras. Os vossos comentários fazem-me tão bem! Obrigado a todos! beijinhos :)

papu disse...

Ó Nuchinha, linda, então não eras uma neta a sério? Claro q eras, deixa-te disso, eras tão neta como eu e o meu irmão e os meus primos! Pois então a avó flor não era (quase) mãe do teu pai tb? E os nossos pais irmãos? Tb tenho mtas saudades, do tanque e das nossas brincadeiras loucas! Beijokas!