sexta-feira, dezembro 25, 2009

Conto de natal

A mulher olha a árvore de natal em silêncio. O brilho das luzes a derramar longas sombras nas paredes brancas.
O marido está morto, os filhos estão longe, num país distante. Ou foi ela que se ausentou para parte incerta, não tem a certeza.
É isso que precisa, de se encontrar a sós consigo mesma.
Um encontro há muito esperado.
Nunca pôde estar só, porque o medo sempre lhe tragou a razão. Hoje pode por fim olhar-se ao espelho e ver-se tal como é. Sem efeitos especiais, sem luzinhas a piscar, sem brilhos azuis e vermelhos, sem estrelinhas no alto do pinheiro.
Só ela.
As velas com aroma de tangerina e canela ardem na solidão da mesa posta. Quatro pratos dispostos geometricamente, os copos altos onde a luz de sangue de um porto velho arde juntamente com as velas. O fumo dança no espaço vazio, no silêncio que se abate, vindo de dentro dos pratos de vidro.
A fruta descansa na cristaleira, e adquire tons de ébano à luz fraca das velas.
A sua mente está em branco, como as paredes.
Lá bem no fundo ainda espera a família que não virá.
A família que talvez não tenha.
Os filhos talvez uma ilusão no prolongamento de uma fantasia de menina. Brincadeiras de bonecas que alimentou às colheradas pela boca, papas sintéticas que se dissolviam em chichi e cocós que saíam pelos respectivos orifícios. Bonecas da velha era tecnológica. As de hoje falam e gatinham e se for preciso até arrotam depois de lhes dar o biberão.
A mulher suspira. As bonecas de outrora passaram à história. Menos ela.
Os minutos escorrem vagarosos. Da casa vizinha ouve-se o borburinho de vozes, garfos e facas em laborioso fragor, gargalhadas a espaços com o tilintar dos copos que ela adivinha de pé alto e elegantes, a reluzir a textura suave dos vinhos espumantes. As vozes e a excitação das crianças abafam estes sons, e por momentos tomam conta de tudo.
Ela está sozinha, como desejava há tanto tempo.
E de súbito já não está só, vê-se no meio da sala grande dos avós, e à volta da mesa estão aqueles que tão bem conhece, metade já mortos, mas ainda a sorrirem-lhe do espelho da memória. O espelho falso da memória.
Não quer chorar, a mulher. Quer encontrar-se com ela própria e com os seus medos.
Que fácil que é ter assim tudo organizado na cabeça. Não, afinal enganou-se. Os papéis espalham-se pelo chão, arrastados na fúria do vento. Os papéis velhos, as folhas secas do outono, os restos da vida que ainda se lembra. O sabor acre da solidão em ferida na garganta.
Tem um ajuste de contas com o passado, um passado que lhe foi roubado. Quando ficamos sem passado temos de arranjar um a qualquer custo, nem que seja inventado. E ela esmerava-se, todos os dias, tecendo fios que se entrançavam em telas, conjugando cores e texturas, alinhavando sem destino duas margens opostas que teimavam em afastar-se. Agora, porém, era altura de parar e recuperar o que não vivera. O passado que não chegara a ser seu.
Podia recomeçar tudo de novo, pensava, enquanto se deixava enebriar pelas luzes espaçadas da árvore de natal. Nem sabia porque a montara. Talvez para melhor reaver esse passado que teimava em fugir-lhe. Talvez para recordar os natais da infância, aquela infância longínqua de outra vida.
Fechou os olhos e desejou com muita força ter nascido outra pessoa. Se desejarmos com muita força as coisas acabam por acontecer, dizia-lhe a melhor amiga da primária. Mesmo essa já não lhe pertencia. Toda a sua vida se resumira a um engano.
Mas tens de desejar com a alma. E quem não tem alma? Pede uma emprestada?
Que pergunta estúpida. A mulher levanta-se e caminha até à porta. Tem o casaco, o gorro e o cachecol pendurados no cabide. Com gestos lentos, veste o casaco e tapa a cabeça e o pescoço no aconchego da lã. Lá fora a neve cai silenciosa.
Silenciosa como os seus passos, as pegadas a apagarem-se para sempre.
Dentro de casa permanecem os pratos vazios em cima da mesa, o ardor das velas e as luzes interminentes da árvore de natal. E os ruídos da vida da casa vizinha.

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