segunda-feira, agosto 23, 2010

Ainda é cedo

Os gestos mais banais pesam toneladas. Limpar o pó. Pôr a roupa a lavar. A máquina é de manias, ainda por cima. O programa normal, dos algodões, a 60ºC, demora quase três horas. Três horas! E é económica, que faria se não fosse. Depois, como é daquelas todas modernas, de programação digital, só faz a centrifugação se o peso da roupa não for demasiado. Vocês sabiam que 6kg de roupa não dá para encher a máquina? 6 kg apenas ocupam menos de metade do tambor. Foi isto que lhe disse o técnico, chamado à pressa para ver o que se passava, uma máquina novinha em folha que se recusa a centrifugar sabe-se lá por que caprichos. Nem mais. Roupa a mais. Mas como é que pode ser uma coisa destas, tinha perguntado, incrédula. Toda a gente que conheço enche a máquina até acima. A mãe, a avó, as irmãs, as tias, as primas, as amigas... Será que andamos todas equivocadas? O que é certo é que resultou, com metade da roupa a máquina centrifuga sempre. E basta um descuidozito, às vezes uma toalha a mais - as toalhas então, que ficam pesadíssimas quando estão molhadas, aquilo é um sarilho para acertar - para que, teimosa, ela se recuse ao movimento espiralado e centrífugo, ficando naquele limbo de voltas e mais voltas sempre no mesmo tom monocórdico e preguiçoso. Isto hoje até as máquinas têm os seus humores, nada é certo nesta vida, temos de nos preparar constantemente para a surpresa, ainda que vinda de onde a gente menos espera, neste caso o mundo dos electrodomésticos, que coisa mais sem graça. Ela, porém, já resolveu a questão. Sim, que isto de fazer meias máquinas a três horas cada lavagem não está a dar. Ladrões, é o que eles são, não roubam num lado roubam no outro. Por isso agora lava a roupa por partes. Sim, que esta máquina, além de esquisita e pretensiosa, também é versátil: tem um programa que vem mesmo a calhar, com a duração de uma hora, que apenas faz a lavagem principal. O enxaguamento e a centrifugação têm de ser programados à parte. É um incómodo, claro que é, ter que estar a fazer todas as etapas manualmente, mas que se lixe. O que não dá é para o gasto. E assim, senta-se na cozinha, às vezes traz um livro, outras abre o macbook e vai lendo os jornais online, as notícias do sapo, os blogues que mais gosta, e, claro, aproveita para pôr o facebook em dia. O ruído da máquina até acaba por ser uma companhia, no fim das contas. O ruído e ver a roupa lá dentro a girar, acaba sempre por lembrar-se das brincadeiras de criança, das rodas, dos carrosséis das feiras, de coisas assim. E depois fica com a sensação de que não é apenas uma máquina de roupa que tem de levar a cabo às partes, mas toda a sua vida. Um passo de cada vez, porque o peso de qualquer gesto, qualquer decisão, por mais insignificante que seja, é demasiado. Um sentimento de cada vez, assim é que seria melhor. Ocupar-se primeiro da raiva acumulada, deixando-a estancar. Aí adivinhava dias seguidos, talvez meses. O ódio, esse outro sentimento de estimação, haveria de distribuí-lo irmamente, em pequenas doses, para não matar ninguém - o medo que ela tinha de matar alguém. Depois de repartido, poderia entreter-se a esquartejá-lo, com uma perícia de talhante, apenas para se divertir, ou para se encher do cheiro enjoativo do sangue - e, estava certa, numas semanitas teria o assunto arrumado. Depois a desilusão, o desapego, a ingratidão, a compaixão por algo que ficou irremediavelmente quebrado - tudo cozinhado em lume brando, para poder assistir a todas as mutações de ponto - de colher, de cabelo, de pasta, de rebuçado. Em seguida retiraria a mágoa - e com essa todo o cuidado era pouco, uma vez que se encontrava completamente entranhada, quase uma segunda pele, uma segunda aorta, um terceiro brônquio, uma indefinida circunvalação. Com a mágoa era necessário um trabalho de mestre, de jardinagem, de moça bordadoura, cravando a agulha uma e outra vez no linho branco das coisas irremediáveis, sabendo que a dor se desataria, por fim. A dor, que não se pode dizer que seja um sentimento, antes uma sensação, mas que se pode intrincar nos solilóquios intermináveis da alma, minando-lhes o tom e o entusiasmo. Apanhar o rancor, como se faz às ervas daninhas, e queimá-lo numa fogueira - outro dos pequenos passos a que se propunha. Com o rancor pode ser preciso um trabalho de decantação, porque nem tudo o que ele produz é danoso - afinal, sem uma certa dose dele, não nos poderíamos deitar à sombra do desamor, e desamar às vezes é importante - desamar quem nos faz mal ou quem se aproveita de nós. Chegados aqui, o programa acabou, agora é preciso enxaguar. Desligar a máquina, voltar a ligar, escolher o programa, seleccionar temperaturas e rotações. Era uma rotação de 180º, faz favor. Nunca percebera porque dizem as pessoas uma rotação de 360º quando se querem referir a uma mudança substancial e radical de pontos de vista, ou simplesmente estratégicos ou de localização, se uma rotação de tal natureza geométrica nos deixa exactamente no mesmo ponto onde nos encontrávamos antes. Talvez para essas pessoas o que conte não seja o ponto exacto onde termina a viagem, mas antes o percurso rotacional, completo, que nos dá a percepção de todas as possíveis perspectivas sobre uma questão central. Talvez seja isso. Premir o botão do enxaguamento. A água lava tudo. Não há melhor remédio para as mágoas e tristezas. É por isso que devemos chorar. Chorar muito. Lavar o peito, escorrê-lo de desgostos. E assim, quando premimos o botão da centrifugação, será esse movimento milagroso que nos soltará a melancolia, espalhando restos de lástimas à nossa volta, levando consigo a água das lágrimas até ao infinito. Finalmente, atingiremos o cerne, a matéria quente do amor, esse afecto poderoso, que estava escondido, enterrado, pensámos até que morto. Talvez não. Tenhamos esperança. Um passo de cada vez, começar, recomeçar; pisar o chão com cuidado, e sobretudo, saber esperar. Esperar. Ainda é cedo.

1 comentário:

Guida disse...

Como a partir de um programa para lavar roupa se chega a coisas profundas! É isto o talento!
Beijos.