As minhas leituras

Que Importa a Fúria do Mar, 
Ana Margarida de Carvalho

Este livro não se devora; e não se devora porque precisa de ser digerido com vagar, com tempo para saborear e ruminar; com tempo para parar e voltar atrás e ler de novo, seja porque a beleza da descrição nos faz querer beber lentamente e ao minuto cada palavra, ou porque a acidez de algumas passagens nos arde na boca do estômago, ou talvez ainda porque as lágrimas nos inundam os olhos de pura comoção e a vista se nos turva. É um livro que não se lê; sente-se. Ouve-se. Cheira-se. Entranha-se. E quando damos por nós estamos lá dentro. No meio do campo, a ouvir os sons da bicharada; aos solavancos no comboio, ao lado de Joaquim, naquela viagem infernal a caminho da incerteza; no olhar entediado de Eugénia, contando as moscas, procurando evadir-se, sem nunca repousar, sempre ausente e perdido entre os seus abismos e o mundo, o passado e as memórias; e depois, finalmente, apaixonado, deslumbrado, amedrontado, extasiado, tudo ao mesmo tempo, que quando dá por ela e já não consegue domar nem dominar os sentimentos que lhe brotam ao desbarato dos poros. Na frigideira no Tarrafal, em morte lenta, abafada, asfixiada; no mar lodoso de algas moribundas até à cintura, e no alívio das feridas ardendo na água salgada; na fúria do mar que amaldiçoa quem o ousa abandonar com o cheiro putrefacto das coisas mortas. Este livro tem vida e apodera-se de nós e quando damos por isso já não há nada a fazer, recusamos acordar do sonho e ficamos parados naquele segundo eterno em que os olhos se perdem no azul do mar, lá ao fundo, ao virar da última página; e é na nossa cara que o vento bate de chofre, no embalo da corrida até à última palavra, mar, numa promessa de eternidade.


Por Este Mundo Acima, Patricia Reis


Movemo-nos numa noite escura. Os passos frágeis, à flor da escuridão. O ar irrespirável. Sobrevivemos, e não queremos crer nessa possibilidade. À nossa volta, o cenário esmagador da realidade, da destruição extrema. Percebe-se que aconteceu uma catástrofe nuclear a nível global; porém, os pormenores, os detalhes de tal cenário escasseiam. Apenas a geografia familiar completamente esventrada, exposta na sua estranha crueldade, uma crueza esmagadora. A minha leitura é a de que este cenário é apenas isso: um cenário, um pano de fundo, porque esta viagem é essencialmente interna. Os recantos cheios de sombras, a derrocada, os cadáveres dos edifícios, as bocas de esgoto a deitar por fora, o lixo, o cheiros, o arrepio do medo, estão cá dentro, dentro de cada um de nós, dentro de quem sobrevive todos os dias, e nessa busca desesperada volta à dimensão física, animal, da existência. Porque é no corpo e nas suas necessidades que tudo começa e acaba. É o corpo que é real, e, paradoxalmente, só o compreendemos quando o perdemos ou quando ficamos reduzidos a ele.

A luta pela sobrevivência é assim, passo a passo, segundo a segundo, pulsação a pulsação. É um tempo onde nos movemos sem rumo, sem saber a direcção, sem saber nada. E não há ninguém para perguntar o caminho, ao contrário da parábola da existência da boca e da consequente chegada a roma. É um caminho interno e solitário. Uma luta renhida pela lucidez, que começa nos gestos mais banais. E, ao mesmo tempo, o desespero de preservar a memória. Sem ela morremos de facto. Para um sobrevivente, a morte pode ser um consolo, quase um alívio. Para um sobrevivente, cada movimento dói, uma chaga permanente chamada vida. Mas, em lugar de se render ao abraço da morte, da desistência, ele continua em frente, teimoso, raivoso, numa obstinação que tem tanto de desespero como de instintivo. O animal, a fera em acção. A vida, que afinal se conquista, a deitar as garras de fora.

Percebemos, assim, que o mundo está cheio deles. Sobreviventes. Antes ou depois do acidente, pouco importa. Afinal, o acidente apenas veio definir, exteriorizar, uma catástrofe que se desenhava há muito no horizonte, um cataclismo secular, um poço sem fundo, uma tragédia planetária, que sempre nos acompanhou na vida privada. Agora é posta cá fora, no rosto do mundo. Podemos então olhá-la de outros prismas, conhecê-la, interpretá-la. Não com raciocínios, mas com as emoções à flor da pele. Vemos a busca do sentido. Da memória. Dos livros. Os livros que contam estórias e fazem história. As pessoas de outrora, os amigos, pequenos deuses distantes no paraíso de outra vida, que antes de ser outra era o inferno de todos os dias. O preto transforma-se em branco e o branco em cinzento. Todavia, temos mãos, temos tintas e pincéis, que ficaram da outra vida. É só pegar neles e pintar. A criança que se encontra e nos devolve tudo, de uma assentada, tudo aquilo que julgáramos perdido, tudo o que já não acreditávamos ser possível. Com ela vemos o mundo como se fosse a primeira vez; a destruição passa a ser o cenário primeiro, o ponto de partida; e como mostrar o passado, o que foi destruído, como trazê-lo para o presente, como oferecê-lo às novas gerações? E de súbito, percebemos que o cenário mudou. Abriu-se uma porta, apareceu uma luz, não temos a certeza. O cenário ainda são as ruínas; porém, tudo está diferente. As pessoas falam (as mesmas que antes não falavam, e eram apenas sombras passando ao longe), trocam sorrisos e palavras, trocam coisas; coisas simples, pequenos objectos, e coisas maiores, alegrias, tristezas, estados de alma, e juntas descobrem o poder da partilha, de construir algo em comum. Como se fosse a primeira vez. Assistimos ao renascimento do mundo, da vida, como se a vida fosse uma coisa abstracta, exterior, uma língua estrangeira que precisamos de aprender a decifrar. Experimentamos os sentimentos básicos dessa vida, como quem prova colheres tímidas de sabores desconhecidos: o amor, a amizade, a mulher, o homem, uma criança, um filho, a morte, a raiva, a agressividade, a luta, a coragem, a partilha, o egoísmo, a solidão, a solidariedade, a cumplicidade. O medo, esse, é aquele que já conhecemos de cor, de tanto lhe calçar os sapatos e calcorrear os caminhos. O medo, esse animal que se esconde na toca, encolhido, assustado, e que, ao sentir-se encurralado, se pode tornar gregário, primeiro por desespero, por não ter para onde fugir; depois, e ao perceber, pela primeira vez, um medo igualzinho ao seu no rosto estranho que o olha. E assim nasce aquela flor frágil chamada esperança.



Blueeyedboy, Joanne Harris

Joanne Harris tem este dom de conseguir meter-se na pele de qualquer pessoa. A ela e a nós, e antes que nos demos conta, lá estamos, enfornados nos sapatos de um maluco qualquer, um gajo completamente passado, um criminoso, um perverso. Só que, sem darmos conta também, começamos a encontrar qualquer coisa familiar debaixo daquela capa, qualquer coisa que é nossa, também. Uma pessoa como nós; a pessoa que poderíamos ter sido, se. Se. Talvez.
Hoje em dia está na moda escrever sobre perversões, e se forem sexuais melhor ainda. Escreve-se muito, porém, sempre com aquela distância confortável de quem assiste, ou com uma proximidade obscena apenas para fazer número, para exibir, ou para ocultar, conforme o caso. Ninguém, a bem dizer, se quer enfiar na cabeça de um desses personagens completamente loucos. Muito menos encontrar semelhanças com ele ou ela.
É isso mesmo que Joanne Harris faz com perícia: enfia-nos, sem pedir licença, na cabeça das pessoas mais abjetas. Sem pudor. Sem medo.
Esta é também uma estória sobre outros personagens, aqueles que criamos nesta rede virtual, todos os dias, uns por não terem mais que fazer, outros por preguiça ou inércia, outros por não ousarem sê-lo fora do ecrã, outros por lhes faltar a alma, outros porque sim ou porque não. A forma como nos pintamos, produzimos, enganamos, mentimos, ou dizemos a verdade sem querer dizê-la, expondo-nos sem querer fazê-lo. E a possibilidade de tudo, afinal, não passar de uma mentira que fabricamos, alguém que inventamos; alguém que ambicionamos ser; alguém de quem fugimos e para quem somos atraídos irremediavelmente. E também a figura estúpida que tantas vezes fazemos, sem disso nos apercebermos, quando deixamos comentários a aplaudir aquilo que não fazemos a mínima ideia do que se trata, porque as palavras ocultam, as mais das vezes, mundos de que não conhecemos sequer a superfície.
Uma estória que nos deixa presos no suspense até ao fim, que nos surpreende, como só ela sabe surpreender, e que, no fim, revela tanto de nós mesmos. E o mistério persiste, mesmo depois da última palavra.



Um pai em nascimento, José Eduardo Agualusa

"O meu filho está na idade do polvo - a todo o momento nascem-lhe imprevistos braços e as respectivas mãos." É assim que começa uma das crónicas do livro de José Eduardo Agualusa, Um Pai em Nascimento. Lembrava-me desta frase, nunca mais a esqueci, desde um dia, já há alguns anos, em que achei que não havia melhor forma de descrever aquela idade em que as crianças se lançam na exploração do mundo, virando-o de pernas para o ar, e nós com ele, pelo que agarrei na Pais & Filhos de então e fotocopiei a última página (espero que não se lembrem de me autuar por atentado aos direitos de autor ao fim de tanto tempo) para levar para uma sessão de formação que leccionava na altura a um grupo de futuras amas e auxiliares de educação. Lembro-me, aliás, que o que realmente pretendia era introduzir alguma corrente de ar, digamos assim, naquelas sessões, onde tinha de ir falando sobre as primeiras etapas do desenvolvimento infantil. Uma aragem fresca num assunto que facilmente se pode tornar monótono e aborrecido.
Reler essa crónica, ao fim de (quantos?) doze anos (ou serão treze?), e ler pela primeira vez muitas outras, foi muito mais que uma janela aberta, digamos que foi um vendaval, quase uma tempestade tropical, que me agitou a memória e, muito mais que a memória, aquelas sensações primitivas que me sacudiram as entranhas quando engravidei pela primeira vez. A gravidez das mulheres é muito mais física, concreta e palpável do que a dos homens,esta muito mais etérea, sonhada, sublimada. Os homens, impossibilitados de carregar o bebé, (ou de chocar o ovo), têm de gerá-lo noutro lugar, aquele que transcende o corpo, ainda que em comunhão com ele: a cabeça, ou o coração, para os mais românticos. O que é curioso é que as mulheres, apesar de ligadas ao bebé pelo cordão umbilical, pelo âmago da sua essência física, não deixam de construir, elas também, esse outro lugar, essa morada, esse país, que começa por ser distante e remoto, mas que se vai tornando cada vez mais nosso, onde começamos por habitar, primeiro como estrangeiras, e depois, cada vez mais certas, como mães. "Gostaria de acreditar" diz José Eduardo Agualusa,"que ao partilhar as minhas dúvidas, ansiedades e alegrias, estou a contribuir para que alguns homens se sintam um pouco menos sozinhos nos seus erros e algumas mulheres um pouco menos acompanhadas nas suas formidáveis certezas." As certezas das mães, ou o seu famoso instinto, que parece advir apenas do facto de serem mães, e que eu acredito que nasçam dessa intimidade fisiológica que não admite distância nem estranheza (és carne da minha carne, sangue do meu sangue, o que é que posso não saber de ti?) são, elas também, vulneráveis aos ventos agitados da alma, quando, chegadas a esse lugar remoto, que nasceu algures entre a barriga e o coração e a cabeça, se encontram com essa outra mulher, esta acabada de nascer, e cheia de dúvidas e medos e ansiedades tão poderosas como as raízes de certas árvores e certas verdades cósmicas. Por isso uma mãe também partilha com o pai este território desconhecido, em que ambos nascem sem se reconhecerem, como se precisassem de aprender tudo de novo, como se olhassem para o mundo pela primeira vez. Uma mãe também se reconhece nas dúvidas de um pai que não sabe para onde vai, que se questiona e que pensa de forma tão simples sobre o que é isso de ser pai, e como pode ser possível esse nascimento (crescimento). É esse o verdadeiro milagre da vida: permitir-nos habitar outros mundos como se fossem nossos.
Recomendo este livro a toda e gente e especialmente àqueles pais (homens) perdidos e embrenhados no mar de dúvidas e angústias da primeira viagem. Não porque vão encontrar respostas, mas porque certamente encontrarão a certeza tranquilizadora de que não são os únicos náufragos nessas águas, certeza essa que é sem dúvida a melhor bóia. E porque, para além disso, irão desfrutar das gargalhadas que os salpicos da água provocam a quem se embrenha nessa fantástica aventura, a de ser pais e a da leitura destas crónicas.



The lost symbol, Dan Brown

É uma ideia bastante sedutora e até enternecedora, a de que, desde tempos imemoriais, os homens se preocuparam em preservar a sabedoria primordial, aquela que tem o poder de elevar o homem à condição de Deus. Que essa sabedoria tenha sido escondida e protegida até ser doada como herança às mentes iluminadas que a usarão em nome do progresso e do bem da humanidade. Que essa sabedoria tenha como raiz o poder da mente humana, e que creia que essa mesma mente tenha sido criada à semelhança do criador, e que seja, por isso, divina e criadora. Que a crença em Deus deixe de ser submissão a uma entidade exterior e ameaçadora, para passar a fé em nós mesmos enquanto sujeitos construtores do futuro e da realidade à nossa volta. Que todas estas ideias sejam, ainda por cima, corroboradas pela ciência nascente, que mais não é do que o passo que faltava dar para que ciência e vida, alma e corpo, matéria e ânima sejam reconhecidos como unos, uma e a mesma coisa. E que toda esta sabedoria milenar esteja intricada no âmago da história de todas as religiões, escrita nas entrelinhas dos textos sagrados, escondida e codificada atrás das suas inúmeras alegorias, para ser descoberta e finalmente aceite como a única e possível verdade, aquela que queremos absoluta porque vem de dentro e não de fora de nós. Afinal somos nós os Deuses e a verdade é a nossa, a que trazemos ao mundo quando nascemos, a perfeita sincronia entre corpo e mente, a unidade mítica que faz o mundo girar e o universo expandir, o poder infinito, transcendente, divino, de sermos um só, uma única mente, partilhando o mesmo pensamento e a mesma vontade. Imaginem as coisas maravilhosas que a humanidade poderia construir, se todos partilharmos desta força, desta coesão de vontades e de espíritos, se todos acreditarmos no poder da mente una, produto de todas as mentes unidas e iluminadas (at-one-ment).
(Arre, que isto até parece um discurso demagógico de um desses fanáticos religiosos de uma igreja de deus qualquer...)
Enfim, a mim fica-me este sorriso parvo nos lábios, e ao mesmo tempo aquele sentimento ligeiramente incómodo e constrangedor de não entender muito bem essa cena da mente iluminada. O poder da mente. Uma mente disciplinada. Disciplina quer dizer ordem, arrumação, categorização, exclusão, eliminação de partes indesejáveis... Se os pensamentos têm o poder de influenciar a matéria, onde é que vai parar a nossa individualidade? Esta, sim, parece-me uma ideia aterradora. Disciplinar a mente, deitar fora os pensamentos negativos, porque os pensamentos negativos são perigosos e indesejáveis. Acho esta ideia de uma imaturidade sem nome. A tolerância da ambivalência afectiva é, talvez, o sinal mais evidente de uma maturidade emocional. Querer acabar com ela é privar o Homem da sua identidade e da sua liberdade enquanto indivíduo. Porque a liberdade é algo que só possuímos completamente dentro da nossa cabeça. Este, sim, é o bem mais precioso que possuímos: ser livres para imaginar o que quisermos, sem medo das consequências.


Aventuras de João Sem Medo, José Gomes Ferreira

A primeira vez que ouvi esta estória tinha nove anos e foi-me lida pela minha professora. Um capítulo todas as manhãs. Recordo o impacto brutal que teve na minha imaginação - passado algum tempo, eu própria escrevi um texto intitulado "A cidade do avesso" que teve grande sucesso naquela altura no pequeno universo que era a minha turma. Acho que data daí, aliás, o início da minha carreira como contadora de estórias. Posso dizer, portanto, que o culpado foi ele, o José Gomes Ferreira.
Foi de tal maneira que não descansei enquanto os meus pais não me compraram o livro - um igual ao que está na imagem - que eu voltei a ler, com entusiasmo redobrado. E nunca mais o esqueci. Agora estou eu a lê-lo aos meus filhos. E - assombro dos assombros - logo desde a primeira página me apercebi de que, afinal, não é uma estória para crianças. A própria linguagem, aliás, é muito pouco própria para a compreensão infantil - o livro está cheio de palavras difíceis, algumas quase impronunciáveis. Aquilo que me parece mais apropriado dizer é que se trata de uma alegoria perfeita de todo um povo e uma época específicos. No entanto, isto não lhe rouba nenhuma qualidade, bem pelo contrário. Acho, aliás, que a maneira como o autor o catalogou - um panfleto mágico em forma de romance - é de longe a mais adequada. Pois acredito piamente no poder mágico daquelas palavras, esse poder raro de acordar o monstro inebriante da imaginação, principalmente depois de assistir ao espectáculo que é estar a ler a estória aos meus filhos, muito pausadamente para que eles entendam tudo (e fazendo inúmeras paragens para lhes explicar o significado das palavras mais insignificantes, que, como é óbvio, lhes escapa ao entendimento) e estar a ser constantemente interrompida pelos seus delírios loucos de imaginação ruidosa - num crescendo de tal forma imparável que até fico rouca de implorar-lhes que me deixem continuar a leitura. É verdade. Eles ficam completamente passados e é incrível a profusão de imagens fantásticas que lhes assalta o espírito, geradas pelas palavras mágicas deste livro. Incrível.




Cemitério de Pianos, José Luís Peixoto

José Luís Peixoto abre espaços dentro das palavras, e lá dentro consegue meter vastas planícies de silêncios, de pequenos sons, paletas de cores, rios inteiros de águas lodosas que arrastam o tempo para outra dimensão. Ao lê-lo, a noção do tempo altera-se, o pulsar do coração torna-se mais lento, pesado, tranquilo, até acabarmos por conseguir sentir os segundos entre os dedos, escorrendo silenciosamente. A luz também se altera, e desdobra-se infinitas vezes, até ao âmago da escuridão, até àquele ponto em que ambas, escuridão e luz, se misturam e se tecem nas sombras, nos cantos cheios de pó e teias de aranha, aqueles cantos que cheiram a bafio e a humidade, e que alastram para dentro dos pulmões como uma nuvem de outro tempo, soltando espirros e comichões na garganta à sua passagem. A luz demora-se nas esquinas, nas arestas, nas superfícies, e espelha-se, com um brilho invulgar, mágico, na retina translúcida daquele olhar que era o nosso, na infância já tão longínqua, hoje apenas um pontinho minúsculo no horizonte enevoado. As palavras dilatam, como o tempo, e albergam dentro delas o princípio e o fim do mundo, das vidas simples que descrevem, do cheiro da terra seca ao sol e da mesma terra molhada das chuvas. São mundos dentro de outros mundos, que se abrem, lentamente, como pétalas de uma flor. Mundos que cabem em espaços minúsculos, em pequenos gestos, minudências; gestos que descaem, lentos, de mãos enrugadas pela idade, ásperas, como casca de árvore; mãos gretadas pela água gelada misturada com o sabão azul e branco, em ferida, de tanto esfregar.

Na sua escrita, cada frase é uma porta entreaberta para outro quarto, outra casa, outra rua, outro mundo. Às vezes as frases tornam-se líquidas e transportam-nos ao mar; de outras são sólidas como pedregulhos de múltiplas e incisivas arestas. Neste Cemitério de Pianos, o tempo torna-se redondo, e anda para a frente e para trás no mesmo movimento (só numa superfície redonda o atrás se torna no mesmo que o que vem à frente). É essa a magia do universo, do mundo, dos planetas, dos movimentos de rotação e translação: infinitos e intermináveis círculos, sempre em frente e para trás ao mesmo tempo; sempre redondos e repetitivos. A vida é uma repetição interminável em várias versões que parecem diferentes mas que, no fim, se descobrem semelhantes. Todos os caminhos vão dar ao mesmo ponto. Mas não é um simples ponto, claro. É um lugar, ele também, redondo. E nele cabem todos os destinos, todos os passos, todos os rostos, todas as danças trágicas de todas as vidas e ainda todas as almas iluminadas que dão luz a essas vidas.


Do fundo do coração, Mary Lawson

Este livro mexeu com as minhas emoções. É sobre um luto, ou antes, vários lutos, e denota um conhecimento profundo da alma humana. Não um conhecimento teórico e desligado da realidade, mas aquele que se constrói dia-a-dia, vagarosamente, sem rumo definido, sem rosto, como um rio que lentamente corre para o mar, e na sua corrente vai arrastando a lama das margens e as pedras do fundo, incorporanda-os e dinamizanda-os na sua essência líquida e em constante movimento.

Todos nós temos os nossos lutos, mais ou menos presentes. Todos já percorremos esse caminho, às vezes um atalho de sombras, ou uma estrada plana, ou simplesmente um carreiro oculto entre a densa vegetação que nos fustiga e arranha os braços. É por isso que este livro fala a nossa linguagem, aquela que é comum a todos, independentemente da língua. São atalhos esquecidos, perdidos há muito dos nossos pés, que nos conduzem a charcos estagnados de águas profundas, onde o mistério da vida se renova a todos os segundos, e nos oferece o fascínio da nossa própria sobrevivência, aquela bolha de ar que alguns insectos transportam para dentro de água, agarrada à camada de pêlos quase invisíveis a olho nu, e que lhes permite mergulhar no mistério aquático e por lá ficar até a reserva ambulante de oxigénio se esgotar. Esse gesto, tão simples, ensina-nos a sobreviver. Porque o que nos rouba o oxigénio não são os cadáveres que enterrámos pelo caminho e que lembramos com um sorriso triste nos lábios, mas aqueles que transportamos às costas, teimosos, solitários, pelos passos dos dias subitamente eternos de dor e de vazio incompreensíveis.



A Sombra do Vento, Carlos Ruiz Zafón

Depois deste livro, parece-nos que não existe outro livro nem outra estória. Não pode haver. Não é que não estejam lá, todos os outros grandes escritores e as grandes estórias que já lemos, as que ainda não lemos e as que nunca leremos, porque estão, entram pela janela e invadem a teia das palavras que nos rodeia, como aquela luz rara que de vez em quando nos acaricia o olhar cansado de tanta frivolidade. Aliás, não fosse esta estória uma estória de livros, com muitos livros, milhares deles, dentro dela, repousando para sempre nas estantes do Cemitério dos Livros Esquecidos, que de esquecidos só têm mesmo o nome ou a simples impossibilidade numérica de os ler a todos.

Mas, inexplicavelmente, todos esses grandes livros que nos povoam o imaginário parecem de súbito, criação deste. Entendemos, portanto. Tudos o que lemos anteriormente, seria, então, um caminho que nos levaria aqui. A este livro. E daqui o caminho que se abre ganha uma outra luz, depois deste. Porém, nos minutos seguintes, não queremos acordar do sonho. Parece-nos que nunca mais leremos nada assim. Não temos vontade de ler mais nada. Como se os outros livros não passassem disso mesmo, de outros livros, ao passo que este é o livro, o único, como pode ser única uma folha de um grande castanheiro, uma só folha, que, por acaso, tem aquela cor que nos enfeitiça como nenhuma outra. Esta estória marca-nos,como se fôssemos eternamente jovens. É na juventude que os livros deixam mais marca, porque em nehuma outra época da vida o deslumbramento é um gesto tão espontâneo. A nossa vida de leitores fica dividida ao meio: a.S. e d.S. - ou seja, antes da Sombra e depois da Sombra. Que sombra? A do Vento. Sem dúvida.



Purga em Angola, Dalila Cabrita e Álvaro Mateus

Ler este livro foi, para mim, uma viagem infernal, dolorosa, porém de grande lucidez. Aquela lucidez absolutamente crédula do poder regenerativo e re-estruturante da verdade. Não a verdade absoluta, única, universal, que não existe, antes a simples verdade dos factos, e mais importante, as verdades sentidas, sofridas na pele por quem viveu esses factos; aquelas verdades há muito caladas e engolidas, presas na garganta, amordaçadas, e que finalmente vêm à tona.

Ler este livro representou, também, e definitivamente, o fim de um mito - um mito que já vinha morrendo aos poucos, mas que, talvez, ainda mantivesse alguns restos teimosamente agarrados à vida. Eu cresci a ouvir o Zeca cantar o "homem novo do MPLA". Cresci com a ideia que de facto o MPLA era o movimento popular de libertação de Angola, levando realmente à letra o significado destas palavras tantas vezes ditas e ouvidas. A autonomia e a independência de um povo, de um país, contra o Colonialismo, esse monstro escravocrata e opressor. Cresci a defender com veemência, para quem me quisesse ouvir, que a arrastada guerra-civil pós-independência, em Angola, se devia principalmente ao estado de colapso social e económico que anos e anos de despotismo colonialista tinham provocado.

Já tinha idade para saber que só nas estórias infantis é que há um único bicho-papão.

Os acontecimentos à volta do 27 de Maio são uma ferida gigantesca no coração não apenas do país, mas do mundo inteiro. E para sarar uma ferida, há que deixar sair o pus. E o pus, neste caso, são as memórias, os gritos de sofrimento que se calaram durante tanto tempo. Isto é como um trauma social, um caso colectivo de stress pós-traumático. Por mais que doa, tem de ser falado, sentido, expressado, revivido. Só depois do sofrimento se libertar é possível o alívio. O sofrimento está lá, escondido, calado, se não sair, infecta. Como um verdadeiro abcesso.


Tantas vezes a história individual é paralela à história social. E os processos, tão semelhantes.

E depois há aquelas críticas idiotas de que o livro é muito violento, para quê estar agora a mexer na lama, o que passou, passou, foram excessos, a culpa descartada sempre para cima de outros. É incrível a conspiração de silêncio que persistiu (e ainda teima em persistir) à volta de tudo isto. Não podemos ter medo das palavras, de chamar os bois pelos nomes. A violência é das acções e de quem as pratica, não de quem as reporta e as testemunha.

Este livro é um verdadeiro grito na cara desse silêncio teimoso, envergonhado, desse silêncio que pensa que consegue apagar uma memória apenas por a calar. Mas o incrível é que consegue. Haja sempre aqueles que não se calam, e que têm a coragem de subverter o esquecimento. De gritar por todos aqueles que já não podem ou que perderam a voz.



Contos de Clarice Lispector

A escrita dela é orgânica. É a primeira palavra que me vem à cabeça quando penso num adjectivo que seja adequado para descrevê-la. Se é que é possível arranjar uma palavra que lhe faça justiça. Quando a lemos, mergulhamos num lago profundo onde as emoções mais antigas se nos colam à pele. Sentimos cada partícula, cada átomo, cada molécula do que ela descreve. Sentimos mesmo, uma coisa palpável, orgânica; daí a palavra. De repente mergulhamos nas palavras e elas levam-nos na sua corrente, velozes como um comboio expresso sem destino, a cabeça meio fora da janela a sentir o vento apoderar-se dos pulmões e o coração a querer saltar do peito. Nessa viagem alucinante vamos ao centro de nós. E, claro, no centro moram as emoções. Aquela teia colorida e densa que nos cercava quando a infância ainda dormia, morna, nos nossos ombros, e nos era leve nas asas e pesada nas mãos. Nesse tempo sentíamos o cheiro ácido das laranjas penetrar-nos até ao lume, e na boca do estômago desenhavam-se novelos de inquietações que não nos ensombravam ainda a existência com o peso dos espectros, apenas nos assaltavam em sobressaltos escondidos debaixo das camas e em fantasmas ocultos atrás das portas e dos cortinados, que, incrédulos, verificávamos com o susto pronto a saltar da boca. Nesse tempo o sol derramava-se poderoso e escorria-nos pelo cabelo nos dias intermináveis de verão, e os chapéus eram um martírio de suor que nos humedecia os sonhos e nos dificultava a respiração ansiada da liberdade. A liberdade, essa, era o vento nos cabelos e nos olhos, a comichão no nariz e o peito gelado pela humidade marítima que o beijo da ventania nos prometia nas tardes no cais. Ficávamos a ver o barco carregado de fogos fátuos desaparecer na escuridão, e acendíamos velas nas ondas negras longínquas, solitários barcos de pescadores ocultos no nevoeiro cego de orações e mau presságios, apenas adivinhados nas imagens sofridas dos santos nas igrejas, estátuas de carne com vestígios de sangue nos músculos de pedra. E aproximávamo-nos, a mão medrosa tocava a pedra fria e um arrepio de séculos rasgava-nos a ingenuidade e a inocência de alto a baixo, deixando pegadas de incertezas debaixo das pedras subitamente mudas. O silêncio das igrejas era sepulcral, e ao mesmo tempo cheio de ecos onde adivinhávamos os murmúrios de tantas almas caladas. O cubículo de madeira, com pesadas cortinas bordeaux parecia-nos uma casinha de bonecas, e tudo aquilo, toda aquela confissão permanente e acumulada deixava-nos um sabor a espanto na boca, e a curiosidade de mil segredos escondidos no cheiro a madeira milenar. Cá fora o sol derretia as pedras e lá dentro reinava um silêncio gelado e sinistro de tumba. Mas as nossas gargalhadas de criança sempre se espalhavam como palmas pelos ecos das paredes brancas, onde a luz do sol era proibida, onde as sombras desenhavam pensamentos ocultos na brancura do vazio.

A escrita dela aviva memórias, como se ateasse uma fogueira, e cada labareda, cada clarão vermelho cada vez mais quente, nos fosse entrando na pele. Voltamos àquela morada pálida, onde cada olhar tem o poder de dissecar o tempo e o espaço e abri-lo num leque de cheiros e sensações e luzes e cores e serpentinas, e cada partícula do nosso ser invade o espaço dessa escrita e imiscui-se nela, mistura-se na pele e no suor das personagens, encosta-se no seu ombro, ouve o bater do seu coração no seu. Voltamos a ser a criança que fomos, quando os olhos percorriam e se apoderavam do que viam; quando os olhos, mais do que ver, nos mostravam e nos iluminavam, nos projectavam e nos escancaravam a alma. Os olhos das crianças vêem o mundo não a três dimensões, nem a quatro, nem a cinco, mas a mil, a um milhão, a infinitas. É um olhar insaciável, que ainda não conhece as regras da percepção. É essa multiplicidade de prismas e de ângulos e de cores que ela nos devolve, intactas, como eram antes de as enterrarmos sob o manto da racionalidade. Quando a lemos, esquecemos os contornos da realidade e somos invadidos pelo poder de uma inteligência primitiva, uma coisa viva, como um coração a pulsar, o centro e a nascente dos rios e do sangue, a corrente sanguínea que sabe de cor os caminhos e os trilhos e os fundos e os abismos porque lhe conhece a cor vermelha, a força do fogo, o início da vida. Saber de cor é saber com o coração, é conhecer a escuridão e dentro desse túmulo escavar a terra húmida para que dê frutos e árvores de sábias raízes. E, finalmente, o milagre da luz, nas folhas verdes. Ou das palavras.



Rio de Janeiro, Carnaval no Fogo, Ruy Castro

Estar de cama tem, pelo menos, uma vantagem: consegue-se algum tempo para dedicar à leitura. Ontem, quando já me sentia um bocado melhor, devorei literalmente este livro. Depois de lê-lo, apetece, no mínimo, ter nascido carioca. Ou, então, apanhar o avião, de mala e cuia, e instalarmo-nos na Cidade Maravilhosa, fazer dela a nossa cidade, misturarmo-nos com as gentes, andar no calçadão e beber uma água de côco no fim da tarde, com os olhos postos no mar.



Malinche, Laura Esquível

Esta história é sobre a língua. A língua e o seu poder. Ao nomear as coisas à sua volta, ao dar significados ao mundo que há em cada coisa, os homens ganham o poder dos Deuses. Cada signo, cada símbolo, torna-nos senhores do universo que é a palavra, por ela nos apropriamos do que nos rodeia e transformamos tudo à nossa volta. A língua tem o poder de criar uma nova paisagem sintáctica, de reinventar, reordenar, renomear. A língua é o que nos liga ao mundo dos outros, das pessoas à nossa volta, e nos põe no centro da sua comunicação universal. Pela palavra podemos criar, podemos nascer, podemos remexer, podemos ferir, podemos matar. Tal e qual como um lavrador semeia a terra, tal e qual como a chuva traz a vida, tal e qual como a enxurrada traz a fúria das águas.

Esta história é sobre o poder divino da palavra. Sobre a forma como os Deuses falam através dos homens e das mulheres. Os Deuses são o poder mais alto da própria natureza. A natureza do homem e dos Deuses pertence à vida e está em perfeita harmonia com o cosmos. Os Deuses estão na água, que é o símbolo máximo da vida. Estão no sol, que permite que essa vida renasça e se recrie constantemente. Estão no milho, fruto do sol e da água, alimento da alma e do pão que alimenta o corpo. Estão na terra que nos viu nascer e que nos servirá de morada um dia. Estão dentro de nós, que os alimentamos e criamos nos rituais diários da vida.

Mas esta história é também a história do Homem e das suas conquistas. A história do sangue e da luta. A história da crueldade assassina. A história do massacre. Da morte e das feridas mais atrozes da Humanidade. É a história do poder do Homem usurpando o poder dos Deuses. É a história dos povos em busca do ouro, do ouro que os tornará Deuses na terra. É a história da humilhação, da raiva, da vergonha. É a eterna história dos mais fracos e dos mais fortes.

É também a história de uma mulher desesperada. Uma mulher que tem uma arma poderosíssima mas não sabe como a usar. Uma mulher que sonha, que busca, que espera, que deseja, que acredita, que não desiste. Uma mulher que está rodeada de morte, mas que sempre consegue enxergar a vida. Que sente que pode mudar a vida, mas não sabe como. Que sofre horrores, que tem dores e feridas no corpo e na alma, e que não esquece nenhuma delas.

Mas é também a história de um amor. Um amor forte, esmagador, feito de angústia e de fogo. Um amor que consome a carne e a alma. Um amor que une um homem e uma mulher completamente diferentes na essência, e os leva lado a lado por caminhos que nem um nem outro sabem como pisar. Um amor que sufoca, que envenena, que submete. Um amor que prende, que ata, que asfixia. Um amor violento, dominador, egoísta. E no entanto, um amor puro e inocente, como todo o amor. Nascido de um sonho muito antigo de protecção e carinho.

A história da morte, a história da vida, a história do sofrimento, da guerra, do terror. Dos que sofrem e dos que fazem sofrer. Dos que abandonam e dos que são abandonados. Dos que matam e dos que morrem. Dos que humilham e dos que são humilhados. Dos que violam e dos que são violados. E muitas vezes ela confunde-se, sobrepõe-se, une-se dramaticamente num laço apertado de sofrimento e raiva. Quem abandona já foi abandonado. A história sucede-se, as vidas nascem e morrem, as estradas estão cheias de mortes que vamos deixando pelo caminho, de vozes que nos acompanham desde crianças, de mágoas que não sabemos nem podemos lavar. E é ela, a água, que nos lava, que escorre dos rios e das chuvas e nos germina o peito de esperança, que arrasta o sangue dos corpos feridos a seguir ao massacre e inunda com a sua seiva os campos em redor.



O Outro Pé da Sereia, Mia Couto

"A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa" 

Mia Couto cria estórias de encantar. E, através das suas estórias, dá-nos uma importante lição de história. A história de um povo não é mais do que o encontro das suas memórias. E, quando essas memórias se perdem, quando as pessoas abandonam a própria memória para sobreviver, a história queda-se, perdida, entre abismos e fantasmas.

Este é um livro de viagens dentro da história de cada personagem. Para recuperar as memórias perdidas, é preciso viajar até ao interior de nós próprios, ao passado, à nossa própria história. Assim, uma mulher que se isolara para esquecer volta à sua terra natal, e ao seu passado. Ela terá de enterrar os seus mortos, que permaneciam vivos, na parede eterna onde os seus rostos a olhavam das molduras do antigamente. Mas esta viagem vai mais fundo, ela faz o tempo sair da calha da razão, e agitar-se no céu como uma ave subitamente liberta. E os acontecimentos sucedem-se em catadupa. Terão os habitantes de Vila Longe ressuscistado da sua memória, ou permaneceram vivos durante todo esse tempo de ausência, no meio dos escombros e ruínas da antiga vila? Terá o velho barbeiro enlouquecido, ou terá razão, quando diz que os dois estrangeiros acabados de chegar são dois espiões enviados pelo governo americano? Terá sido uma estrela que despencou do céu, como afiança o seu marido, ou terá sido uma aeronave utilizada pelos serviços secretos? Será esta mulher realmente visitada pelos espíritos dos antepassados, ou está apenas a fingir e a debitar tudo o que lê nos antigos escritos de D. Gonçalo da Silveira, encontrados dentro de um baú, juntamente com a estátua da Virgem Maria, nas margens do rio? Será realmente a Santa que conduz esta viagem, ou melhor, Kianda, a deusa das águas, eternamente em busca do seu elemento primitivo, que os homens, ignorantes da sua verdadeira identidade, lhe negam? São os deuses que criam e conduzem os homens, ou são os homens que criam e veneram os deuses?

Ao mesmo tempo, acompanhamos a viagem da nau Nossa Senhora da Ajuda, uma viagem missionária com destino a Moçambique, no ano de 1560. Nas naus que integram a comitiva vão D. Gonçalo da Silveira, jesuíta na Índia Portuguesa, o padre Manuel Antunes, o escravo Nimi Nsundi, a escrava indiana Dia Kumari, funcionários do reino, deportados e outros escravos, e a estátua de Nossa Senhora, benzida pelo papa, considerado o "símbolo maior daquela peregrinação". É nesta viagem que a Santa perde um dos pés, dando início assim à viagem inexorável de cada um destes personagens na descoberta do caminho marítimo para o continente da sua própria natureza, alma e história.
No fim desta viagem, a mulher reune os restos do seu passado e enterra definitivamente os seus mortos. E, finalmente, encontra um lugar onde Kianda, a deusa das águas, pode enfim descansar e reencontrar a sua natureza. E, desta maneira, a história retomará o seu rumo, que mora afinal no coração e na memória dos homens...


Liberdade sem Medo, A. S. Neil
Este livro foi muito importante para mim, a uma dada altura. Pode dizer-se que era a minha Bíblia. Desde o primeiro momento que as ideias de A. S. Neil me cativaram, por aquilo que tinham de inovador, mas também de irreverente, e de verdadeiro. Por verdadeiro não pretendo ilustrar nenhuma verdade absoluta: verdadeiro no sentido de humanamente verdadeiro, subjectivamente, ligado aos sentimentos e às emoções.



Para entendermos de uma forma mais profunda os livros e a experiência deste autor, temos de nos reportar à época em que ele viveu, em que surgiram as suas ideias inovadoras de educação. Elas foram de facto revolucionárias, se atendermos ao facto de que as práticas educativas correntes da altura incluiam o uso da palmatória e os castigos corporais. O próprio Neil era um simples professor integrado no sistema, que, tal como todos, dava continuidade a essas práticas. Simplesmente, ele não se sentia satisfeito com isso. Começou a questionar-se. E decidiu quebrar a regra. O que, para a época, era completamente utópico.




Mas ele foi em frente e fundou a sua escola. Uma escola onde as crianças tinham total liberdade de fazerem o que quisessem. Para além disso, participavam e colaboravam activamente em todas as Assembleias Escolares, onde eram definidas as regras básicas da escola. Todos, desde os mais novos aos mais velhos, tinham uma palavra a dizer, que pesava tanto como a de qualquer adulto.




Era portanto uma inovação total, tanto de princípios educativos como democráticos. E o mais extraordinário, é que teve resultados muito positivos a médio, longo prazo. A maioria das pessoas talvez torça o nariz e pense que, com toda esta liberdade, a escola dificilmente cumprirá o principal objectivo a que se propõe, que é dar uma educação de qualidade aos alunos. Mas a experiência veio provar o contrário. Se nos primeiros anos as crianças pouco estudavam, e ocupavam a maior parte do tempo com brincadeiras e outras actividades menos próprias (Neil conta que nestes primeiros anos perdeu a conta aos vidros partidos), a pouco e pouco elas começavam a interessar-se pelo estudo e pelas aulas. Mais: faziam progressos extraordinários. Conseguiam progredir em muito menos tempo do que as crianças das escolas normais. Neil interpretava isto como o resultado do facto de as crianças estarem genuinamente motivadas para aprender. Quando existe motivação, a apredizagem processa-se muito mais depressa. Mas não foi só no sucesso escolar que a experiência de Neil vingou. Ela provou que as crianças possuem espírito crítico e valores fundamentais como a partilha, a entre-ajuda, a cooperação, o respeito pelo próximo e pela autoridade, e que tudo isso não precisa de lhes ser metido na cabeça pelos adultos. Se nos primeiros anos as regras da escola, definidas por todos, eram bastante permissivas, revelando a imaturidade inerente ao estádio de desenvolvimento da maiorias das crianças, nos anos subsequentes essas regras foram mudando no sentido de uma maior responsabilização, maturidade e autonomia. E as crianças eram as mesmas.

Como é óbvio, este livro deixou há muito de ser a minha bíblia, aliás, acho que já não tenho nenhuma há muito tempo. Hoje contesto muitas das ideias que ele expressa nos seus livros. Mas com a sua essência continuo a concordar. Muito se aprenderia se quem está à frente das escolas e do ensino lesse estes livros com olhos de ler. Porque está lá tudo. O sucesso da aprendizagem não se mede por resultados escolares. O sucesso da aprendizagem mede-se pela auto-estima dos alunos, pela sua capacidade em optimizar o seu potencial, pelo gosto e pelo prazer de aprender. A escola da actualidade precisa de uma mudança radical. E essa mudança passa obrigatoriamente pela inclusão da voz dos alunos nas tomadas de decisão. Os alunos têm de ser responsabilizados e envolvidos no próprio processo de aprendizagem, sob pena de este se tornar completamente alheio e divorciado dos seus interesses, como acontece na realidade escolar actualmente.

Há muitas escolas, espalhadas por todo o mundo, e em Portugal também, que se pautam pela generalidade destes princípios, onde os alunos têm voz e participação activa no seu processo de aprendizagem, e todas essas escolas são exemplos do verdadeiro sucesso escolar. O que é que será preciso acontecer para que a maioria dos professores e das pessoas que estão à frente do Ministério da Educação se apercebam disto?



Diário de Sebastião da Gama


Lembro-me do nome de Sebastião da Gama dos livros da escola, os primeiros livros, aqueles que ainda se liam com gosto. Lembro-me das palavras simples e bonitas, lidas a espaços e com intervalos para sonhar. Mais tarde, lembro-me de alguns poemas soltos, frases mágicas, que finalmente me despertaram a curiosidade para saber mais, ler mais, procurar mais.
Os livros existiam todos na colecção dos meus pais. Eu fui lendo, folheando, intuindo. Pressentindo a alma deste poeta-professor. Ele era um professor. De poucos professores se pode dizer que são realmente professores. Aqueles que realmente gostam do que fazem, têm prazer com a sua profissão, e, acima de tudo, respeitam os alunos. Era esta atitude de respeito que mais me enternecia e me fazia sorrir. A dedicação imensa aos alunos. A motivação em ensiná-los de facto, ou antes, em ajudá-los a aprender. A preocupação constante em tornar as aulas interessantes. Lembro-me particularmente bem de uma passagem do seu Diário, em que ele conta que teve de pôr um aluno na rua. No meu tempo de estudante, ir para a rua era o pão nosso de cada dia para alguns colegas mais irrequietos. E era uma coisa tão natural, que já nem fazia mossa.
Mas não para o nosso professor. Ele não era um professor qualquer. Ficou a remoer, a remoer, e acabou por desabafar. Não me lembro das palavras exactas, mas a ideia era mais ou menos esta: se calhar, ele fez barulho, porque a aula não lhe interessava. E, se calhar, a aula não lhe interessava, porque de facto não tinha interesse nenhum. E, nesse caso, quem devia ir para a rua era eu.
Era assim, este professor, sempre a questionar-se, sempre a pôr-se em causa, sempre a tentar melhorar. Por detrás do professor havia um homem simples, modesto, sensível, que encantava os alunos e com quem ele convivia. Depois de o ler, recordo as histórias que ouvi, às pessoas que tiveram o privilégio de o conhecer: o meu pai foi seu aluno, na sua passagem por Estremoz; os meus avós lembravam-se dele, a minha avó contou-me que ele andou com a minha mãe ao colo, e dizia que ela era a menina com os olhos mais bonitos que já tinha visto. O meu primo Aníbal também o conheceu, e num dos seus livros ele fala nele, entre outros nomes incluídos na família alargada de parentes e amigos, e nos passeios e encantos da Serra D'Ossa. Toda a gente o lembra como uma pessoa de carácter fora do comum, um coração imenso, uma alma grandiosa, mas acima de tudo um homem simples, sem vaidade nem pretensões.



Os seus poemas são simples, de palavras inteiras, de imensa ternura. Os escritos que deixou revelam a intensidade e a profundidade da sua alma. O livro que mais me encantou foi sem dúvida o seu "Diário", o relato do seu dia-a-dia de professor, o modo como se entregava ao que fazia, como abraçava a vida, como era capaz de sorrir com as coisas mais pequenas. Era um homem avançado no seu tempo, creio. E morreu muito jovem, mas, de certeza, pleno de tudo aquilo que viveu.





Capitães da Areia, Jorge Amado
Impressionada com os acontecimentos de S. Paulo, no Brasil, lembrei-me deste livro. A história dos meninos de rua. Meninos das favelas. Meninos ladrões, meninos bandidos, meninos que nunca o foram, que nasceram e tiveram de abandonar a infância demasiado depressa. Meninos que são o retrato futuro de muitos desses bandidos que hoje matam pessoas inocentes e espalham o terror por onde passam. Mas o retrato pintado por Jorge Amado é terno, é comovente, na sua crueldade, na sua realidade, na sua verdade. Jorge Amado consegue retratar esses meninos com incrível precisão, com ternura, com amor, com ódio, com raiva, com tristeza. E cada palavra, cada rosto de criança que ele desenha, cada pegada de menino que ele planta no chão, cada alma humana que ele cria é uma seta apontada ao nosso coração. Ele consegue tocar o nosso íntimo, ele consegue fazer-nos sentir crianças, nós, essas crianças abandonadas, sem nada, sem voz, sem vida, apenas com as lágrimas e as marcas de uma vida inimaginável. Mas ele traz para cada rosto e cada coração de criança uma humanidade incomparável, impressionante. Nós vemo-nos, revemo-nos, escutamo-nos nas suas palavras. E choramos. E rimos. E voltamos a chorar. Eu chorei, muito, quando o li. Tinha 15 anos e nunca mais esqueci os Capitães da Areia.



O ano em que Zumbi tomou o Rio, José Eduardo Agualusa

Um pequeno (grande) homem que morre e ressuscita, e que vive no desejo de se libertar do peso do corpo. Ele vai ser testemunha de um acontecimento histórico importantíssimo. Com as suas palavras vai levar ao resto do mundo o seu olhar sempre vivo e perspicaz (esta parte imaginei, na verdade ele apenas escreve para um jornal português) sobre a maior revolta negra na história do Brasil, desde a escravatura. Mas esta não é uma revolta só dos negros. É a revolta de todos os que vivem marginalizados no seu próprio país, de todos os que habitam o submundo das favelas brasileiras e não têm hipótese de se libertar da austera estigmatização social, numa sociedade onde não existe lugar para eles, numa sociedade que, paradoxalmente, não se considera racista nem preconceituosa. Uma mulher triste e solitária, que se diverte a atormentar os homens com as suas obras de arte pouco convencionais sobre a natureza feminina, e que abre a porta para um desconhecido no meio da noite, a porta da rua e a do coração, começando assim uma "estranha estória de amor". Um homem que em tempos trabalhou para o Ministério da Segurança de Estado de Angola, e vive na tentativa desesperada de fugir da própria memória e dos velhos fantasmas que a habitam, que vende armas aos traficantes das favelas. Um velho delegado de polícia, honesto, inimigo da corrupção, que a tudo assiste, impotente, sem poder fazer nada contra a escalada sucessiva de violência, e que no fim decide pegar nas armas, disposto a dar o seu sangue numa guerra perdida mas que já é sua. Um outro homem, traficante, um bandido com preocupações sociais e alguma consciência política, que começa uma revolução. Ele decide parar de pagar a cumplicidade aos policiais corruptos que assim fecham os olhos ao negócio do tráfico. E é a partir desta decisão que os acontecimentos se vão suceder, numa espiral incontrolável. É a história desta revolução, que desce das favelas ao asfalto, que é contada neste livro. Uma batalha que, mesmo derrotada, será uma vitória. E que deixará marcas na memória e estrutura sociais do país.

Cenário dramático e impossível? Eu diria realista, dramático sem dúvida. É uma metáfora, um aviso, quase uma premonição. A revolta, as armas, o tráfico, o estado de tensão, de colapso sociais, são a realidade do mundo das favelas brasileiras. A vida ali já é uma guerra. E se os governantes não tomarem medidas concretas, a bomba pode explodir.



Como água para chocolate, Laura Esquível

Esta história é deliciosa. O cenário principal é a cozinha, onde Tita passa a maior parte da sua vida. Desde criança que é na cozinha que ela prefere estar e onde se sente melhor. A cozinha é o coração da casa, e é também o lugar onde ela aprende tudo sobre a vida e os seus mistérios. É nela que ela se refugia para suspirar pelo seu amor a Pedro, e para cozinhar pratos deliciosos e únicos, cuidadosamente preparados com os ingredientes secretos dos seus afectos e emoções...
Pedro, apesar de também a amar, está prometido para a sua irmã. Segundo a tradição da época, Tita não pode casar-se porque a ela cabe o papel de acompanhar a mãe na velhice. Mas o seu coração não se conforma. Continua teimosamente a bater no seu peito, descompassado, completamente ávido de vida e de amor como um passarinho engaiolado.

E não vou contar mais nada, senão estrago-vos o prazer da surpresa! Só digo mais: que este livro é comovedor, é mágico, é hipnotizante. Cada capítulo começa com uma receita de cozinha. E com uma promessa de um novo sabor delicioso na boca.
Não percam... e lambam o prato com o pão!



Miragem de amor com banda de música, Hernán Rivera Letelier

Uma história sobre a vida simples de uma povoação perdida no meio da Pampa. Uma história sobre a vida miserável dos trabalhadores das antigas explorações de salitre. Uma história de um amor súbito e inesperado, debaixo de um sol descarado e abrasador. Uma história de amizade, camaradagem, solidariedade, companheirismo. Uma história feita de música e de beijos e de vida e de morte. Uma história que nos comove e nos faz sorrir e rir com gosto ao mesmo tempo. Uma história marcada por um destino trágico. Uma história de esperança e coragem. Uma história sobre causas nobres e homens que entregam a vida para que outras vidas possam ser melhores que a sua. Uma história de uma morte encarada nos olhos e com uma gargalhada, que persiste no peito de quem a lê como um riso de vitória. Uma história sobre a dignidade e a beleza da vida. Uma história deserta, pesada de solidão, que grita no meio da planície árida como o grito aflito do último comboio da dor. Uma história a não perder.







Comeres dos Ganhões, Aníbal Falcato Alves

O Aníbal era meu primo, e dele recordo a sua simplicidade, o bom humor e disposição, os inúmeros quadros da sua autoria espalhados pela casa, e muitas outras obras de arte, que lhe saíam naturalmente das mãos, a sua arrecadação sempre cheia de coisas a que ele dava utilidade, os seus petiscos e o cheiro e o sabor dos seus cozinhados.
Este livro é um livro de culinária, com as receitas de vários pratos típicos da gastronomia alentejana. É, porém, completamente diferente dos outros livros de cozinha: antes de cada receita, tem vários testemunhos reais de como aquele prato era comido (ou antes, não era comido) pelas pessoas no passado, na época antes do 25 de Abril, quando a miséria alastrava pela região. São histórias de pasmar, histórias de arrepiar, histórias de memórias que não se esquecem e que marcam o passado do nosso país.
Já ouviram falar do "trabalho de sol a sol", ou "trabalho de ver a ver?" Era assim que os homens e as mulheres que trabalhavam no campo se referiam a ele: porque era um trabalho que durava enquanto houvesse luz, começava quando o sol se levantava e acabava quando o sol se punha. Já ouviram falar na açorda pelada, que era a açorda que as pessoas mais pobres comiam, feita apenas de água e um fiozinho de azeite, e que se chamava pelada porque quando caía nas calças não deixava nódoa, devido ao facto de quase não ter gordura? E as azeitonas sapateiras, chamadas assim por o cheiro da água em que eram mergulhadas se assemelhar ao cheiro onde os sapateiros tinham as solas de molho? E da fome que tanta gente passou, e de duas ou três sardinhas repartidas irmamente por uma família numerosa: um ficava com o rabo, outro com a barriga, e depois era uma briga porque ninguém queria ficar com a cabeça. E se a família era numerosa, com muitos filhos, como então era hábito acontecer, três sardinhas nem para duas refeições chegavam. Mas haver sardinhas era uma excepção, era motivo de festa, nos outros dias, na maioria das vezes, só havia pão e água.
Vem desses tempos o hábito de usar ervas bravas na confecção dos pratos alentejanas: beldroegas, poejos, espargos, alabaças... Quando a fome apertava as pessoas iam para o campo e apanhavam tudo o que estivesse à mão e fosse comestível, e com uns bocadinhos de pão faziam uma sopa para enganar a fome.
Foram tempos de penúria, de miséria e fome, recordados e contados na primeira pessoa, o relato de um sabor amargo que a memória não apaga. Um testemunho importantíssimo para a história do nosso país.