quinta-feira, março 17, 2022

Minha querida Marilena


 

Ando aqui às voltas à cabeça, a tentar lembrar-me da última vez que te vi. Parece mentira, mas passaram três anos: no lançamento do meu livro de poesia Aves Migratórias, em Lisboa. Por mais que tente, não consigo lembrar-me do momento da nossa despedida, mas estou certa de que te dei um grande abraço, e isso já me serve de consolo. A última vez que almocei em tua casa, então, foi há sete anos, no verão de 2015. Parece que foi ontem. Todas as vezes, foram sempre ontem.

Aqui em Inglaterra, os velórios são um pouco mais animados do que aí (tenho para mim que esta é a segunda coisa em que os ingleses nos superam, depois da alternativa ao passevite - só tu poderias entender esta piada, pois estou certa de que eras a única que lia este blogue de fio a pavio). Põe-se música a tocar (normalmente as preferidas do defunto), passam-se fotografias, há discursos dos mais chegados, que por vezes são quase palestras sobre a vida, sempre cheia, de quem partiu. Já assisti a dois, e saí sempre a ganhar, com um sentimento em tudo oposto ao que experimento nos velórios em que apenas se chora. Chorar é importante, claro; mas há tanto para lembrar de uma vida; porque não celebrá-la na última despedida? Havias de gostar. E ainda havemos de o fazer, nós, os que vamos ficando cada vez mais órfãos (como te entendo, Miguel!), uma homenagem dessas, a ti e a todos os que, desta nossa grande família, já se foram, e há-de ser uma festa de arromba. Como tu gostarias.

Vê bem, ressuscitei este blogue por tua causa, e agora faltam-me as palavras, sempre me faltarão para expressar a tua perda, porque, ao contrário destas, nunca me faltarás, tenho a certeza, continuarás a falar comigo pela eternidade, assim como a minha avó, o meu avô, o teu irmão Aníbal, a prima Natália, e tantos outros. Eras tu que sempre me pedia mais um post, mais um livro, querias ler ler ler tudo o que eu escrevia, nunca te cansavas, só da espera. Nem sei se conseguiste ler o último, Espécies Protegidas, até ao fim. Tomara que sim. Só tenho pena de não te ter enviado tudo o que aqui tenho, rascunhos, rabiscos, estórias de há séculos, incompletas, que ficaram a medrar, à espera de saírem da gaveta. Sempre acreditei que havia tempo. É um dos privilégios de se estar vivo, a fé na existência do tempo, ainda que tudo aponte em sentido contrário. A vida é uma grande ilusão, das que não queremos, nem por nada, desiludir-nos. Fica a promessa: tudo o que escrever de ora em diante, todos os que saírem da gaveta, serão para ti. Tenho a certeza de que os lerás.

sábado, outubro 22, 2016

Poucas palavras

Acabou-se-me o sal. Gastei o resto no arroz de pato que fiz para o jantar. Cozinhei também o coração do animal. É essa a minha função diária: alimentar. Estômagos, corações, uma família, várias vidas, uma cidade, divindades. Talvez um dia descubra que também alimento estrelas noutras galáxias. No peito ficam as palavras que não ousam esse brilho. Encontram uma forma de liberdade na inexistência. Uma certa beleza revestida de silêncio. Belo é o gesto que enfeita a palavra: a enxada que fecunda a terra. A espera no arredondar do ventre. O primeiro vagido, linguagem primordial. Beleza, traz o vento, em sinais distantes do outro lado do mundo, vozes que nos pertencem porque já nos habitam o coração. As palavras podem ir no vento, a beleza fica no olhar de reconhecimento. No espanto. No sorriso. Até no desapontamento, porque diz da paixão, da urgência. O coração, porém, desconhece a urgência, o tempo, as palavras. O coração sabe do medo, da fragilidade, da ternura, da vergonha, da dor e do amor, do riso e das lágrimas, do ritmo, do compasso da espera, da febre, da saudade, dos sonhos, dos rios e dos mares e dos lugares onde poderemos ser felizes. O coração pulsa debaixo da terra e encerra a beleza que o desapontamento não encontra. Não sei o caminho, ando às escuras e não me pertencem os teus passos. Deixo uma flor em cada encruzilhada.
(Eu sou de muitas e poucas palavras. Para além das que guardo debaixo da terra.)

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Conversas, amizade, livros e arte




A 1 de Abril de 2007 eu escrevia:

Voltar à minha velha amiga Ulmeiro teve o sabor de muitas recordações. Está bastante diferente desde a úlima vez que lá entrei, mas não mudou na essência. Os livros enchem as paredes (e o chão!) e são tantos que lhes ouvimos as conversas distraídas. Outros chamam por nós, convidam-nos a entrar. Sim, é verdade, os livros falam connosco das prateleiras.

Há quadros nas paredes que também nos contam histórias. E se descermos à cave, por umas escadas apertadas, entramos num outro mundo, feito de coisas antigas e memórias embrenhadas nas madeiras dos móveis e no brilho de loiças e vidros que reflectem o arco-íris. E livros, claro. Muitos livros. Dezenas, centenas.


Apetece ficar ali uma tarde, ou um dia inteiro, a folhear páginas, algumas já amareladas, outras com a cor de muitas mãos e muitos olhares, a espreitar títulos em lombadas ocultas nas sombras das prateleiras, a sentir o cheiro de cada história. Já experimentaram cheirar aqueles livros que ainda retêm o mesmo cheiro de há vinte ou trinta anos? Não viajam no tempo?


Mas o melhor que esta velha amiga me trouxe foram dois novos amigos: o Zé Ribeiro e a Lúcia. Com ela apenas trocámos algumas palavras e sorrisos, com ele passámos duas tardes inteiras na conversa, e acho que teríamos ficado mais tempo, não fossem as imposições horárias das nossas vidas a tomarem o comando. Falámos de tudo um pouco, de livros, do mundo, da vida, dos filhos (e dos netos) e acho que no fim ficámos com a sensação de que já nos conhecíamos de longa data. Do Zé, o que me ficou foi a sua simplicidade, o sorriso contagiante, e aquele brilho no olhar de quem já viveu muito.


Ficou também a vontade de voltar, e perder-me no meio dos livros e das recordações.


Hoje, escrevo de novo, para vos dizer que a minha velha amiga precisa de ajuda. O espaço Ulmeiro corre o risco de fechar, e decorre neste momento uma Feira do Livro nas suas instalações, com o objectivo de salvar a livraria, que é um dos principais símbolos da luta e resistência à censura nos tempos da ditadura. A feira pode ser visitada de segunda a sábado, das 10h às 19h, na Av. do Uruguai, 13 A, em Benfica, Lisboa.


segunda-feira, janeiro 25, 2016

Estou grávida de um livro

Vai fazer dezassete anos em Julho, encontrava-me eu no final da gravidez do meu primeiro filho. Os dias eram longos e quentes. Todas as manhãs, depois do banho, ficava largos minutos sentada na beira da cama, nua, já seca, passando creme na pele. Aproveitava para massajar a barriga e quedar-me num silêncio onde tentava vislumbrar o momento em que finalmente seguraria o meu bebé nos braços. Hoje sei que esse silêncio era preenchido pelas palavras que dizia ao meu filho. Há muitas ideias feitas sobre a gravidez e uma delas é a de que as grávidas falam constantemente com os seus bebés. Nessa altura achava que eu devia ser a excepção, mas agora compreendo que não, que para se escutar um filho no ventre é exigido silêncio absoluto. E sem escuta não há verdadeira conversa.
Nesse silêncio eu dialogava com o futuro. Eu via. Imaginava. E, naquele segundo, ansiava por ficar dentro daquela espera, que era uma espécie de redoma, de gravidez do avesso (estava grávida de mim, em simultâneo; grávida da minha maternidade); desejava ficar dentro desse útero para sempre. Uma languidez, uma preguiça apoderava-se da minha consciência; eu queria sonhar, fechar os olhos e não mais pensar; queria deter-me a um passo de acordar, mergulhada no lago morno da minha imaginação; sentir o meu filho nadando dentro do meu ventre e saber que ali, no âmago de mim, estavam todas as possibilidades por nascer. Todos os dias, tardes, manhãs por estrear. A vida em rebento. Um mundo por descobrir. Desbravar. E saber de antemão que desbravá-lo, tocá-lo, cheirá-lo, conhecê-lo de facto, ainda que acima de tudo o mais desejado e antecipado, representa um prenúncio de desilusão. Porque na imaginação cabe tudo o que sobra na realidade. Aquilo que ainda não é contém a promessa do que nunca será. Porque a vida, a terra, o mar, o vento, as tempestades, desgastam. Deixam marca. Erosão. A liberdade que mora na inexistência é, porventura, a única e verdadeira: porque só aí nos reinventamos, recriamos, transcendemos.

Os filhos, no entanto, acabam por nascer. Os livros também. Não aqueles com que sonhámos; nunca esses. Perdemos essa liberdade, sem dúvida: a de imaginar um futuro. A de criar uma vida. Não somos nós, porém, que criamos a vida, é a vida que nos cria. Quando trazemos a criança à luz estamos a entregá-la à vida. Dentro da nossa barriga ela pertence à vida que lhe damos com o nosso sangue: o amor. Fora de nós, pertence à mesma vida que nos fez, que nos trouxe até aqui. E, por conseguinte, o destino dessa viagem deixa de nos pertencer. Serão eles a encontrar o caminho. Quanto aos livros, o caminho é já o fim de uma viagem. As dores de parto começam assim que escrevemos a primeira palavra.

quarta-feira, novembro 04, 2015

Gabriela Ruivo Trindade pede mais atenção da parte dos media

Era este o título de um dos links que se podiam encontrar na homepage do Diário Digital, e que davam acesso à minha entrevista publicada nessa mesma plataforma de informação online, na segunda-feira passada.

Se fosse um trabalho escolar, feito numa aula do sétimo ano, do tipo: lê esta entrevista e depois dá-lhe um título que tente abranger os seus pontos essenciais, que nota acham que o professor daria a um título destes? Na minha opinião, insuficiente.

Insuficiente, porque não representa de forma integral aquilo que eu disse; é aliás, uma representação não só parcial como extremamente adulterada das minhas palavras. Eu dou ênfase a uma questão global, que é a da pouca atenção que os media prestam às mulheres escritoras, e este título, por oposição, personaliza as minhas afirmações. Transforma uma questão geral e pertinente num assunto pessoal, de ego; uma questão da maior importância, quanto a mim, não só no panorama literário mundial (Portugal é apenas uma gota no oceano), como em todos os panoramas possíveis, porque como sabemos a discriminação sexual não se fica pelo meio literário. E quando uma mulher põe o dedo na ferida, e fala disto abertamente, é apontada como alguém que pede atenção para si própria. Uma coisa pessoal, egocêntrica, infantil quase: a mulherzinha a pedinchar a atenção dos media. 

Tenho perfeita consciência do privilégio, em termos de atenção mediática, que representa ganhar o Prémio Leya. A questão não passa por aí. E mais: não me faz impressão nenhuma o destaque àqueles autores que estão sistematicamente no foco da imprensa. A maioria são autores da minha eleição. Acho que merecem todos os gramas de atenção de que são alvo, e se calhar mais ainda. Essa atenção tem é que ser multiplicada. Por tantos nomes de que praticamente não se ouve falar, a maioria femininos. E se me incluo no pacote, é porque acho que o meu caso é ilustrativo da forma como as mulheres autoras são tratadas. Tenho a certeza absoluta de que qualquer outro prémio Leya que fosse distinguido com um segundo galardão (estou quase certa de que nunca aconteceu, mas se estiver errada alguém me corrija) já teria, por esta altura, suscitado o interesse da imprensa, de forma muito mais evidente do que aconteceu, até agora, com Uma Outra Voz. E não, não acho que, por já ter tido a atenção devida quando saiu o prémio, deva ficar caladinha e agradecer a dádiva generosa que Deus, ou o destino, me concedeu. Em primeiro lugar porque não foi uma dádiva: o prémio foi ganho com o meu trabalho, suor, esforço e talento. Em segundo lugar, porque acho que tenho todo o direito ao mesmo tratamento que os meus colegas de prémio. A sociedade e os media não estão preparados para uma atitude assertiva e reivindicativa como esta, por parte de uma mulher? Temos pena.

Eu não quero a atenção dos media; quero, isso sim, que estes façam um trabalho sério, isento, imparcial, anti-discriminatório. É pedir muito? Se não é lei, deveria. 

(Como é óbvio, nada disto tem a ver com o conteúdo da entrevista, nem com a forma como foi conduzida, que foi excelente).



segunda-feira, novembro 02, 2015

Eu não quero a atenção dos media; eu quero é que os media prestem mais atenção à boa literatura: aos autores sistematicamente ignorados cuja maioria são, indiscutivelmente, as mulheres

"O meio literário é um meio essencialmente masculino; ser mulher obriga a um esforço acrescido da parte destas para alcançarem resultados equivalentes aos dos homens, e mesmo assim a equivalência, neste caso, será sempre por defeito. 
Em relação a esta questão, pela parte que me toca, é especialmente ilustrativo o facto de Uma Outra Voz ser o único prémio Leya que falta publicar no Brasil. Por outro lado, o primeiro prémio Leya a ser distinguido também com o PEN não constitui, até à data, matéria de interesse suficiente para um destaque mais elaborado do que a simples notificação, junto dos meios de comunicação social."


A minha entrevista ao Diário Digital para ser lida na íntegra aqui:

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=797045





segunda-feira, outubro 26, 2015

Carta para Luaty Beirão

Querido Luaty,
Estás em greve de fome há 36 dias. Tenho-os contado. Eu e tantos outros, pelo mundo fora. Os olhos do mundo estão postos em ti e nos teus camaradas. Por todo o lado estalam manifestações de solidariedade para com a vossa situação. Multiplicam-se as petições, os protestos. A vossa luta está a dar frutos e só por isso já é vitoriosa.
Estas palavras são de alguém que te admira muito e nutre um imenso respeito pela tua integridade e força de carácter. Por conseguinte, não pretendo demover-te do teu caminho nem convencer-te a alterar as tuas escolhas. Sei que tens recebido muitas solicitações para que acabes com a greve de fome. De alguma forma já deves estar cansado desse discurso. Eu, no entanto, apenas pretendo partilhar contigo as minhas reflexões. Serás livre de concordar, ou não, comigo.
Volto a frisar que tenho uma enorme admiração pela tua coragem e é com humildade que a ti me dirijo. O que estás a fazer é algo que muito poucos conseguiriam. Sei que não te consideras um líder ou um herói, mas tens a mesma determinação e poder de resistência que encontramos naquelas almas que conseguem mudar o mundo com pequenas (grandes) acções.
Aquilo que te quero dizer é o mesmo que dirias, tenho a certeza, a qualquer um que estivesse no teu lugar: a tua luta não pode acabar aqui. O país, o mundo, precisam de ti. Mantém-te vivo, irmão. As causas, grandes e pequenas, não foram feitas para se morrer por elas, mas para se lutar por elas. E para isso é imperativo estar-se vivo.
És um guerreiro, Luaty, dos verdadeiros: os que prescindem da violência e da força bruta. Porém, aquilo a que estás a submeter o teu próprio corpo é de uma violência extrema. E porque há-de a tua vida valer menos do que as vidas que pretendes salvar? O propósito maior da tua luta é defender a dignidade, o respeito pela vida humana. A tua vida tem forçosamente de estar incluída.
Um guerreiro sabe quando é preciso recuar, mudar de estratégia. Perder uma batalha não significa a derrota. Há valores por que vale a pena resistir até ao fim - vivo.
A tua morte não vai trazer nada de bom. A morte nunca traz nada de bom. As pessoas vão sentir-se revoltadas, o ódio e a raiva tomarão conta dos seus corações. A violência, a mesma que queres impedir, uma vez que tens insistido numa luta pacífica, terá todos os ingredientes para detonar. A raiva e o ódio são cegos, tu sabes disso. E as revoltas sangrentas alimentam-se deles.
A tua vida, sim, essa tem poder transformador. Já está a ter. O que conseguiste em pouco mais de um mês ninguém conseguiu em anos e anos de opressão. Isso já não volta atrás. Manteres-te vivo não significa ceder aos teus opressores, pois eles querem-te morto – vão deixar-te morrer, não restam dúvidas. Por conseguinte, na tua vida é que reside o desafio aos teus opressores. O valor da vida humana tem de representar o único compromisso de honra que interessa preservar, neste momento. Não faz sentido lutar por um mundo melhor, por melhores condições de vida, entregando a tua. Não faz sentido como princípio: a tua vida não pode ser menos importante do que qualquer outra. E, hoje, ela é mais preciosa do que nunca, para a luta que se avizinha. O teu corpo sabe disso. O teu corpo tem mostrado uma resistência extraordinária. As tuas células recusam-se a morrer, a abandonar a luta. Ouve o grito de resistência do teu corpo e mantém-te vivo. Força, companheiro.

sábado, setembro 26, 2015

A perda de humanidade

Ontem assisti à conversa aberta que a Amnistia Internacional organizou sobre a situação dos jovens presos políticos em Angola (vídeo abaixo). E só me ocorre dizer: é incrível como a história se repete. É incrível como a cegueira é sempre a mesma.

No debate intervieram alguns jovens angolanos, que estudam ou trabalham em Portugal, cujo discurso revelou, com alguma variedade, mais ou menos a mesma linha de pensamento: Angola é um país independente, não se deve interferir com os seus assuntos internos, isso é paternalismo e restos de colonialismo encapotado; deixem a justiça trabalhar, respeitem as diferenças culturais (que foram apontadas como desculpa para claras condições desumanas de atendimento ao público em alguns hospitais); e finalmente, quem somos nós (e a resto da comunidade internacional) para apontar o dedo a Angola, quando existem violações dos direitos humanos e corrupção à escala mundial. 

O que mais me impressionou no discurso destes jovens foi o facto de, nem por um segundo, transparecer das suas palavras o mínimo resquício de solidariedade, preocupação ou cuidado para com outros jovens que estão presos há meses, em condições precárias, sofrendo maus tratos e alguns em situações de degradação da sua saúde física e mental, sem que lhes sejam dispensados os cuidados necessários. Não houve uma única palavra, um único gesto, que denunciasse qualquer empatia e preocupação genuína pelo estado desses jovens.

Particularmente comovente foi a intervenção da mulher de Luaty Beirão, um dos jovens detidos. Ela, que, como disse, não concorda com a forma de pensar do marido, em termos de actuação em relação às condições vividas em Angola, acabou por acordar para a realidade quando cerca de 50 agentes de segurança lhe entraram porta adentro apenas por ser mulher do detido e, para além do abuso de autoridade que representou a brutalidade com que a invasão à sua privacidade foi levada a cabo, viu confiscado todo o seu material de trabalho (material fotográfico) sem qualquer justificação. Como ela muito bem referiu, isto pode acontecer a qualquer pessoa. Às vezes podemos ser levados a pensar que não há fumo sem fogo; que se os jovens foram presos alguma razão houve para isso. Mas isso só denuncia a cegueira colectiva: aqueles jovens foram presos porque estavam a exercer um direito consagrado na constituição, que é o de se reunirem e organizarem uma manifestação. São presos políticos. A sua detenção é ilegal. 

Infelizmente, para muitos de nós, só quando sentimos na pele é que acordamos para a realidade. Vivemos nas nossas bolhas sem fazer ideia do que se passa à nossa volta, na casa do vizinho, no guetto ao fundo da rua, num país distante. Não fazemos a mais pequena ideia e nem fazemos questão disso. Assistimos à vaga de refugiados da devastação da guerra e o que vimos são oportunistas, até têm telemóveis e milhares de euros para pagar as travessias de barco, o que eles querem é vir para a Europa roubar o que é nosso. Ou terroristas. Seja o que for. Tudo vale, desde que não sejamos obrigados a olhar nos olhos dos outros e descobri-los seres humanos como nós. Os jovens angolanos a viver em Portugal nas suas bolhas de conforto são disso um bom exemplo. Arranjam mil e uma justificações intelectuais para não terem de olhar os olhos dos jovens seus irmãos, presos por contestação ao regime. É que o risco de se colocarem no lugar deles é, quem sabe, demasiado assustador. A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, a empatia, é, no entanto, aquilo que nos define como seres-humanos. Valores como a solidariedade, o respeito mútuo, o direito à dignidade, a fraternidade entre os povos, assentam na nossa capacidade empática. Quando recusamos colocar-nos no lugar do outro estamos a diminuir-nos como seres humanos. Quem perde somos nós.

Conversa aberta sobre Angola, Direitos Humanos e Liberdade de Expressão

segunda-feira, setembro 07, 2015

O que os olhos não vêem e o coração não sangra

Há pessoas que se recusam a olhar a fotografia do menino caído à beira-mar e de mais umas quantas vítimas mortais daquela que é considerada a maior vaga de refugiados desde a Segunda Grande Guerra. Não as condeno. A mim também me provocaram calafrios e uma tremenda angústia as imagens, desse e de tantos outros cadáveres que o mar deu à costa, e que proliferam pelas redes sociais. Mais, procuro compreender: olhar essas mortes, sabendo que foram provocadas por situações de violência levadas a cabo por outros seres-humanos, é, quem sabe, olhar também a culpa de pertencer a essa mesma humanidade, capaz de tais atrocidades. Ou o sentimento de impotência é de tal forma assustador que não conseguimos encarar, mais uma vez, a culpa de nada fazermos para impedir tal horror? As razões para tal recusa, decerto, serão tão diversas quantas as diferentes emoções que possam ser despertadas em cada um de nós pelas ditas imagens e não tenho a pretensão de conhecê-las melhor do que os próprios. Acho, no entanto, que essas pessoas deviam, ao menos, ter noção do enorme privilégio que representa a sua escolha.

As vítimas que não encaramos não tiveram escolha. O que tinham diante de si não era uma fotografia mas a vida real a acontecer. Tão-pouco os milhares de refugiados em fuga têm escolha. As populações que vivem em cenários de guerra, que presenciam tiroteios, explosões, assassinatos, chacinas, banhos de sangue, pura e simplesmente não se podem recusar a ver. Está a acontecer diante delas. O espectáculo da destruição massiva, do massacre humano, é terrível, é bárbaro, é uma agressão constante a toda a humanidade – e dentro dessa humanidade há um grupo que pode desligar o botão ou simplesmente olhar para o lado – não olhar – e outro, o dos envolvidos, que não pode. Não é possível desligar os sentidos. Quem lá está assiste, quer queira quer não.


Para nós, que podemos desligar, desviar o olhar, não ver, é apenas isso, uma questão de escolha. Uma escolha que é um enorme privilégio. Precisamos ter noção disso. E se calhar devíamos ter também outra noção: a de que, porventura, pessoas a quem é dado o imenso privilégio de escolher, deveriam optar conscientemente por olhar, por ver, ainda que engolindo as lágrimas, ainda que à custa de muita angústia e inquietação, ainda que tremendo por dentro. Encarar o horror exige um esforço descomunal, sim; mas se todos, sem excepção, não tivéssemos escolha, tal qual as vítimas desse mesmo horror; se as imagens nos entrassem porta adentro, todos os dias, sem que nada pudéssemos fazer para impedi-lo; se cada um de nós pudesse sentir na pele toda e qualquer agressão a cada ser-humano em particular, uma vez que a humanidade partilhada nos constituísse num só corpo, quem sabe isso não provocaria uma revolução; aquela que seria necessária para decretar tolerância zero em relação à violência extrema de situações como esta.


Some people refuse looking at the photograph portraying a dead child on the shore and many others of deceased victims from what has been considered as the worst refugee crisis since the Second World War. I don’t condemn them. Personally I too shivered and felt enormous anguish watching those images of several corpses brought by sea tides; images that have gone viral on social networks. Furthermore, I try to understand: to face those deaths, knowing that they were caused by extreme violence perpetrated by human beings is, perhaps, like facing our own guilt of belonging to the same human race capable of such atrocities. Or maybe the feeling of impotence is so frightening that leave us incapable of facing, once more, the guilt of doing nothing to prevent the horror? The reasons for such refuse, however, will be as many as every different emotion that those images may awake in every single individual and I don’t presume to know them all any better than the people themselves. Nevertheless, I think that those people ought to bear in mind the notion of the privilege that their chance of choice represents.

The victims who we refuse to face didn’t have a choice. What was before them wasn’t a photograph but life itself. Neither the thousands of refugees have a choice. Populations who live in war scenarios, who endure shootings, explosions, murders, slaughter, bloodbath and the sort, cannot simply refuse themselves to see. It’s all happening before them. Massive destruction and human massacre is a horrendous, barbaric spectacle and represents a constant aggression towards humanity in general – though, inside that humanity there’s a group of people who can turn off the button or simply looking elsewhere, and another group, that of the people involved in the tragedy, who cannot. Senses cannot be unplugged. Whoever is there is forced to look, liking it or not.
For those like us who can unplug, divert our eyes and not look, it’s simply a matter of choice. A tremendous privilege. We must be aware of that. And maybe we should also be aware of something else: that people who are given the privilege of choice should, perhaps, choose consciously to look, to see, even through swallowing tears, dreadful anguish, uneasiness and shivers. To face the horror demands a devastating effort, for sure, but what if everybody on earth, like the horror’s victims, had no choice? What if those images we refuse to see crossed our threshold everyday and we could do nothing to avoid it? What if each one of us could feel on their own skin every single bit of aggression towards every single human being on earth, given that the wholeness of humanity would allow us to share only one universal body? That might, who knows, trigger the revolution we need to decree zero tolerance to extreme violence.

sexta-feira, julho 10, 2015

Cegos, adormecidos e mudos

"O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons", disse Martin Luther King. Eu acrescentaria a falta de vista.

Ou talvez não faça sentido esta dicotomia. Os bons de ontem são os maus de hoje, e vice-versa. Ou nem isso. Somos todos humanos, e todos temos a capacidade do bem e do mal. As escolhas que fazemos e os compromissos que assumimos é que nos tornam maioritariamente bons, ou maus (ou nem carne nem peixe).

Vem isto a propósito do silêncio à volta dos acontecimentos em Angola, que levaram à detenção de um grupo de jovens cujo único crime foi reunirem-se para discutirem formas de resistência pacífica ao poder instituído. Estas detenções, contudo, representam apenas mais um, entre muitos actos ilegais e abusivos por parte do governo angolano. A este soma-se uma infinidade de atentados contra os direitos humanos, abuso de poder, corrupção, apropriação indevida da riqueza do país, e a lista continuaria. A condenação do jornalista Rafael Marques e todo o processo judicial de que foi vítima, apenas por ter denunciado os crimes contra a humanidade e o abuso de poder levados a cabo pelo governo e suas instâncias, são mais um exemplo da forma trágica, violenta e inadmissível com que o totalitarismo em Angola é exercido diariamente.

E enquanto isto, a comunidade mundial olha para o lado e finge que não vê.

A Assembleia da República, em Portugal, poderia ter condenado a repressão política em Angola e apelado à imediata libertação dos jovens detidos, mas não o fez. E não o fez porque apenas um partido (Bloco de Esquerda, que foi quem levou a proposta ao plenário) e um deputado socialista votaram a favor. Todos os outros deputados, de todos os outros partidos, votaram contra.

As mesmas pessoas que representam movimentos partidários declaradamente a favor da liberdade, promotores dos valores do 25 de Abril e da democracia e que, em muitos casos, tiveram um papel activo na luta contra a ditadura, escolheram o silêncio e a negação de uma situação tão grave como esta. Cambada de hipócritas, são as palavras mais leves que me ocorrem.

Vão dizer-me que sou ingénua. Que é óbvio que ninguém se atreve a fazer frente ao gigante Angolano. Que o dinheiro e o poder económico é que controlam o mundo. Isso eu sei, todos sabemos. E por isso mesmo é que é preciso denunciar, fazer barulho, como disse a Aline Frazão na sua crónica no Rede Angola. Não nos remetermos ao silêncio.

Na Europa não temos uma ditadura como em Angola. Na Europa elegemos os nossos governos e somos livres de expressar a nossa opinião. Houve guerras e revoluções para derrubar ditaduras. As ditaduras, porém, continuam a exercer poder. E cuidado, porque o que temos vindo a assistir ultimamente nesta nossa velha Europa assemelha-se perigosamente a um poder totalitário dos mercados e do capital. A forma como os governos são manipulados e corrompidos pelos interesses da banca privada, dos grandes mercados e multinacionais é gritante e, mais uma vez, há muito quem não veja. Ou porque olha para o lado, ou mesmo por falta de vista.

Quer dizer: compactua-se com regimes totalitários e déspotas, desde que com isso se colham benefícios; dentro de casa, porém, convém manter a fachada da Europa democrática e solidária. A muito custo, ainda assim: nunca esta esteve tão em risco de cair como na forma descarada com que o poder central europeu tentou interferir com o exercício da democracia na Grécia. Mas mesmo assim (incrível) há muito quem não veja.

Enquanto permanecermos alienados e cegos vamos perdendo direitos fundamentais que levaram anos a conquistar e, em vez de nos solidarizarmos, apontamos o dedo e desprezamos quem ousa confrontar e desafiar a tirania dominante. O que é preciso acontecer para acordarmos?

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Vinte e oito anos

O Zeca Afonso morreu há vinte e oito anos. Tropeçamos na morte constantemente. Afinal, morre-se todos os dias - e nasce-se, também. Tropeçamos na morte e ficamos momentaneamente paralisados, ao sentir que também o nosso sangue é finito, ao contrário dos rios, que se alimentam da chuva e não se extinguem na seca. Não é a morte, contudo, que nos mata neste instante, e sim a vida que não nos atrevemos a viver, os dias que não inventamos, as palavras que nos ardem na garganta e se extinguem algures entre a traqueia e a aorta. Mortos em vida, estamos muito mais longe dos vivos do que daqueles que partiram - porque desses guardamos sempre o melhor, as memórias que nos convêm. Esquecemos a dor porque essa, sozinha, nos deixa encurralados. A dor que provocamos nos outros é nossa - devíamos senti-la nossa - e como tal assumi-la, tomando a responsabilidade nas mãos. Porque não o ensinamos aos nossos filhos, desde tenra idade? Magoaste, pedes desculpa. A dor dos outros é nossa porque é igualzinha à que sentimos quando somos nós os magoados. Aprendemos com o exemplo, e não há exemplo mais digno do que o do respeito, aliado à tomada de responsabilidade e consciência dos próprios erros. Fizeste merda, pede desculpa. Simples. As coisas mais simples da vida, porém, são aquelas que parecem mais complicadas. Há quem não consiga ver, simplesmente, como a senhora vereadora do UKIP que fez aquela triste figura ontem na televisão. E, valha-nos Deus, tanta gente hoje na LBC a dizer que a senhora foi apenas honesta, e blá blá blá. Será que ninguém explica a esta gente o significado de preconceito? Sentir-se incomodada na presença de pessoas com uma cor de pele diferente e não saber porquê, é mesmo aí que começa o preconceito: num sentimento perfeitamente legítimo de nos sentirmos incomodados ou ameaçados pela diferença do outro. Não teria consequências de maior se ficasse por aí, mas infelizmente na grande maioria dos casos leva a comportamentos discriminatórios. E então, sim, começam os problemas.

segunda-feira, fevereiro 16, 2015

O último Natal

A mulher olha a árvore de natal em silêncio.

O marido está morto há muito; os filhos, num país distante. Ou terá sido ela que se ausentou para parte incerta, não tem a certeza.

As velas com aroma a canela e tangerina luzem na solidão da mesa posta. Quatro pratos dispostos geometricamente, os copos altos em que a luz sanguínea de um Porto velho arde juntamente com as velas. O fumo dança no silêncio que se abate nos pratos vazios.

A fruta na cristaleira adquire tons de ébano.

Os minutos escorrem, vagarosos. Da casa vizinha chega-lhe o burburinho de vozes, garfos e facas em laborioso fragor, gargalhadas a espaços com o tilintar dos copos que ela adivinha de pé alto, elegantes, reluzindo a textura suave dos vinhos espumantes.

E de súbito está à volta da mesa, na casa dos avós, acompanhada por aqueles que tão bem conhece, metade já mortos, mas ainda a sorrirem-lhe do espelho da memória. O espelho falso, mentiroso, da memória.

Podia começar tudo de novo, pensa, enquanto se deixa inebriar pelo brilho das luzes. Por que raio montou, afinal, o pinheiro?

Fecha os olhos e deseja com muita força ter nascido outra pessoa. Se desejares com muita força, as coisas acabam por acontecer, diziam-lhe em criança. Mas tens de desejar com a alma. E quem não tem alma? Pede uma emprestada?

Pergunta estúpida. A mulher levanta-se e vai até à porta. Com gestos lentos, veste o casaco e tapa a cabeça e o pescoço no aconchego da lã. Lá fora a neve cai silenciosa.

Em casa deixa o silêncio nos pratos vazios.

A noite está deserta. Das janelas vislumbra o incêndio dos pinheiros artificiais. Ao chegar ao fim da rua, começa a subir a colina, em direcção ao parque. No cimo, o coração é uma dor vermelha, a pulsar-lhe dentro de um glaciar. Acaba por se deixar cair junto a um carvalho. A dor segue-se à sensação de dormência. Sabe, todavia, que durará apenas alguns minutos. Quando a manhã trouxer as gargalhadas das crianças, quem sabe não a confundem com um boneco de neve? E é com este pensamento que fecha os olhos.

(conto publicado na Revista Sábado de 23 de Dezembro de 2014)

domingo, fevereiro 08, 2015

We should all be feminists by Chimamanda Ngozi Adichie




Também na literatura homens e mulheres são lidos com diferentes olhos. Quando um homem escreve uma estória de amor, por exemplo, impressiona, demonstra que é inteligente e sensível, sendo este último atributo considerado fora do mundo da masculinidade. Quando uma mulher escreve sobre o mesmo tema, está a fazer apenas aquilo que se espera dela, e, por isso, não impressiona ninguém. Para o conseguir terá de fazer um esforço acrescido para demonstrar que é inteligente e culta, para além de sensível e emotiva. Há pouco tempo, por altura do aniversário de Chico Buarque de Holanda (que eu adoro, note-se), muito se falou do seu sucesso como cantor, compositor e poeta, e o que se ouvia andava quase sempre à volta dos mesmos comentários: a forma única e brilhante como ele consegue descrever os sentimentos de uma mulher. E agora pergunto eu: se aquelas letras fossem escritas por uma mulher, teriam por acaso menos valor? Definitivamente acho que não, mas tenho para mim que se esse fosse o caso ninguém lhe ligava nenhuma! Afinal não é nada de extraordinário uma mulher escrever sobre o amor, as emoções, os afectos, numa perspectiva feminina; o que é extraordinário é um homem, um desses seres analfabetos-emocionais, o conseguir. Esta linha de raciocínio é trágica, quanto a mim, e ofensiva para os homens (e para as mulheres também, como bem me fez notar a Rita Duarte, numa conversa há pouco tempo onde tive oportunidade de expor esta minha opinião, pois as mulheres, tal como os homens, também são seres racionais, como ela muito bem referiu). Enfim, isto tudo a propósito da palestra da Chimamanda Ngozi Adichie, que é espectacular, como sempre.

Also in literature, men and women are read with different eyes. When a man writes a love story, it's impressive: he's showing he's intelligent and sensitive, although this last is regarded as an outsider in the masculine world. When a woman writes the same story, she's only doing what is expected from her, thus cannot impress anyone. To be impressive she would have to make a real effort to show she's as intelligent and educated as she is sensitive and emotional. Some months ago, when Brazilian musician and composer Chico Buarque de Holanda celebrated his birthday (and note that I love his songs), his success as an artist was vastly talked over and over, and almost every comment was made upon his unusual and brilliant talent to describe women's feelings. But let me ask, though: if those lyrics were to be written by a woman, would that have made them less worthy? Surely not, but I think that if this was the case nobody would give her any attention! After all, it's anything but extraordinary a woman writing about love and emotions in a feminine perspective. On the other hand, surely extraordinary is a man, one of those emotionally-illiterate beings, being able to do that. This line of thought is tragic, as I am concerned, and offensive to men (and also to women, as Rita Duarte very well pointed out during a conversation we had not long ago, because women are, as men, rational beings). Anyway, all these thoughts came about Chimamanda Adichie's TED talk, which is amazing as usual.


sexta-feira, fevereiro 06, 2015

Grandes males, grandes remédios

Quando descasco e pico cebola, ultimamente, noto que os olhos já não ardem tanto. Não sei se é impressão minha, mas lembro-me de quando chorava baba e ranho com a mesma actividade. Uma vez ou outra lá acontece e então começo a desconfiar de que há várias qualidades de cebola, consoante o potencial lacrimejante. Aliás, lembro-me de ter ouvido ou lido, na televisão ou no jornal, que a investigação em modificação genética iria proporcionar, em alguns anos, um descascar de cebola isento de lágrimas. Foram estes pensamentos que me trouxeram o mote para esta estória.

Dona Mínima vivia lá nos fundinhos dos campos, muito depois de se atravessar o ribeiro e de a estrada de terra se perder em carreiros de mal traçados pés. Vivia numa casa de pedra, de idade desconhecida, que parecia ter nascido da terra como as árvores e os sonhos. As paredes confundindo-se com as rochas, convertidas em sagrados monumentos graníticos.

Para lá chegar, tinham de se percorrer caminhos incertos, no meio dos vales, trilhos de pedras onde as raízes das árvores nos faziam tropeçar. Havia quem dissesse que era preciso olhar bem o chão que se pisava, pois às vezes das raízes, que tinham o tamanho de braços, podiam brotar mãos súbitas e ávidas que agarravam os tornozelos de quem passava, e assim os engoliam para as entranhas da terra. Mas deviam ser boatos.

Dona Mínima ocultara-se das vistas de toda a gente para assim exercer melhor a sua profissão. Era uma mulher muito competente e tratava de todas as maleitas da alma. É certo e sabido que estes assuntos exigem intimidade absoluta, que só aquela morada, confundida com o próprio coração da terra, podia proporcionar.

A sua fama era galopante, e nas redondezas não se conhecia ninguém que nunca a tivesse procurado para curar um mal de amores, avareza ou melancolia. Mas não se ficava por aqui: Dona Mínima era conhecida praticamente em todos os cantos do País. As pessoas vinham de muito longe, às vezes percorriam centenas de quilómetros, só para ouvir os seus conselhos. E não era apenas gente anónima que a procurava: da capital vinham muitos ministros e secretários de estado, grandes empresários, homens de negócios, empreendedores. Dona Mínima era máxima em contactos de alta envergadura.
Aliás, de mínima, para além do nome, ela só tinha o tamanho. Conta-se até que fora esse o motivo de tão estranho baptismo. Já em criança ela diminuía em altura, e de lá para cá crescera tão pouco que às vezes dava a impressão de ser ainda uma criança. Só as rugas lhe davam a razão da sua inteira idade. E mesmo essa era um mistério para todos.

Dona Mínima era muito procurada por problemas de solidão e tristeza. Não era de espantar, pois naquele lugar o mundo já se divorciara havia muito de si mesmo, e a vida sobrava em horas, quando não de aflição ou desgraça, de tédio e aborrecimento. Poucas pessoas habitavam a aldeia, e pouco tinham de seu; a terra secava devido à falta de água e a cada vez menos braços para a amanhar. Como se isso não bastasse, a natureza pervertera o ritmo das estações. A anos de seca sucediam-se invernos tão chuvosos que tudo o que começava a romper rapidamente apodrecia e não vingava. A água, antes escassa e desejada, tornava-se em poucos dias fonte da desgraça. E novamente vinha a seca. Nos últimos verões os incêndios sucediam-se: a terra enlouquecida, as chamas subindo aos céus numa fúria dantesca. As populações faziam o que podiam para proteger bens, casas e sementeiras, mas em vão: o fogo um gigante com a fúria de um vendaval, os poucos braços disponíveis para o combater nunca suficientes. Para mais, ninguém parecia entender como podiam começar dois ou três fogos ao mesmo tempo, em sítios opostos, parecia até coisa do diabo, que Deus nos proteja.

A vida era dura, e a tristeza, muita. Por isso Dona Mínima receitava amiúde o seu mais famoso remédio: a cebola. A cebola tem o poder de lavar a alma, limpando-a de todas as impurezas e miudezas daninhas. Bastavam alguns bocadinhos de cebola nos olhos de quem andava consumido por mágoas, e o resultado era espantoso: a torrente de lágrimas arrastava tristeza, melancolia, apatia. Mas o tratamento não ficava por aqui: a cebola era esmagada num almofariz e o seu suco igualmente despejado nos olhos do paciente, o que aumentava o lacrimejo e produzia espasmos e soluços. Dito de forma prosaica, fazia as pessoas chorarem baba e ranho.

Depois de alguns dias de tratamento intensivo (a duração dependia da gravidade dos casos, como é evidente), as melhoras eram visíveis. O riso adquiria novas tonalidades e o peito expandia-se. Como já não encontrava obstáculos no seu caminho (a antiga raiva e tristeza acumuladas, que, como sabemos, é no peito e coração que germinam), o ar podia circular à vontade e assim aquecer o sangue com o poder da oxigenação – o maravilhoso fenómeno químico que nos dá a possibilidade não só de respirar, mas também de inflamar. A respiração, afinal, mais não é do que uma combustão – sem chama. Ou melhor, a chama está lá – é o fogo que nos anima e alimenta, circulando nas veias e artérias, sempre direito ao coração.

 O tratamento, recomendado para todas as idades e géneros, nunca falhava. O segredo estava na cebola – o fruto mágico e sagrado da terra. Aliás, segundo Dona Mínima, terá sido com uma cebola que Eva tentou Adão. E foram as lágrimas – o dilúvio das lágrimas – que expulsaram o primeiro homem e a primeira mulher do Paraíso. Pois não há maior sabedoria do que aquela que se esconde atrás do sofrimento, sempre defenderam os sábios e deprimidos da vida. Dona Mínima, contudo, discorda: não é o sofrimento que traz a sabedoria, e sim o choro. Porque é que os bebés choram quando vêm ao mundo? O choro é a primeira linguagem da humanidade, muito antes do riso e da palavra. O choro liberta as tensões e os nós das angústias, dilata o peito e aquece o coração. Abre-lhe os canais privilegiados para a fluidez da sabedoria. É esta a versão de Dona Mínima, Dona Máxima em sapiência.

Um dia, porém, aconteceu um imprevisto. Veio uma mulher procurar os seus serviços. Era velha, esta mulher. Ou melhor, estancara-se na idade. Quem envelhece conserva o entusiasmo da juventude. Quem se estanca na idade não consegue envelhecer, rejeita a pegada do tempo, o despontar da ruga, o retardar do corpo – mirra, enfraquece, definha. Na maioria dos casos, este processo é confundido com o envelhecimento natural, no entanto é completamente diferente. O que acontece é que cada vez vemos menos velhos e mais estancados na idade, e acabamos por confundir uns com os outros.

Dona Mínima conhecia a mulher. Sempre vivera na aldeia. O marido morrera numa guerra longínqua num continente longínquo. O filho crescera sem pai. A mãe tivera de crescer sem o pai do seu filho. E para apagar a dor, quem sabe, plantara a criança num canteiro e regara-a anos a fio, sempre a verter água em abundância para que a pobre planta não morresse de sede. Mas a planta era um menino. Planta sem estufa. E em lugar de raízes tinha pés, ávidos de conhecer o mundo.

Era a mãe que se regava (e prolongava) no filho: naquela pequena planta crescia a sua solidão e viuvez prematura, carentes de água. À força de regá-la, a mulher ia-se enraizando no chão, como as árvores centenárias. As suas dores centenárias. E a criança germinava, pregada à terra, ao lume daquela dor, planta órfã, sem semente que a levasse no vento nem tronco onde se encostasse sentimento.

O filho partiria, muitos anos depois, jovem e aventureiro, ela ficara. Para sempre insistindo em regar a planta, mesmo depois de arrancada à terra. Construiu um jardim. De mágoas. Cada flor uma pequenina boca carnívora mordendo-lhe o coração.

Ora esta mulher sofria agora de um estado de tristeza catatónico, e era incapaz de chorar, por mais cebola que Dona Mínima despejasse nos seus globos oculares. Tentou de tudo. Ela própria cultivava as cebolas, pois tinham de ser das boas, rijas, dessas de fazer chorar as tripas. Agora há para aí umas cebolas criadas em estufas que já não fazem chorar como deve ser, praguejava. Pois bem, parecia que era uma dessas cebolas deslavadas que Dona Mínima colocava nos olhos da mulher.

A mulher, além de se estancar na idade, estancava também o choro.

«O coração da comadre está em pedra. É preciso amolecê-lo.»

Dona Mínima adivinhava o motivo daquela secura. Só chora quem tem dentro de si o rio navegável da tristeza. Quem a cristalizou dentro de si, porém, secou o rio, até ao osso.

Para chorar é preciso lágrimas. Para navegar é preciso remos. E nos braços, a força dos remos.
Mas onde estavam as lágrimas daquela mulher?

Dona Mínima adivinhava: dias a fio, à chuva e ao sol, a mulher regara; primeiro, a sua planta órfã; depois, o seu jardim de lamentos. Fora a água das suas lágrimas, esses anos todos.

Dona Mínima sabia o que fazer. Havia que devolver o rio ao seu leito. A dor ao seu peito. E só uma pessoa podia fazê-lo.

O filho partira há trinta anos, e nunca dera notícias. Dona Mínima sentia aquele pedregulho no coração da mulher: pior do que perder um filho, é jamais deixá-lo ir. Jamais vê-lo nascer.

Pior do que perder um filho é ter de regá-lo todos os dias, à chuva e ao sol, para que ele ganhe raízes onde não inventa asas. Vê-lo definhar na terra. Ficar sem chão. E buscá-lo na solidão.

Dona Mínima desconfiava dessa prolongada ausência de notícias. Das três apenas uma: ou o homem se dera muito mal e morria de medo, ou se dera muito bem e morria de vergonha, ou as duas coisas (morria de medo e de vergonha de voltar).

Dona Mínima conhecia muita gente, de outros territórios e outros mundos. Puxou e repuxou cordas e cordelinhos, e rapidamente ficou a saber o que pretendia.

O homem engordara corpo e dinheiros. Arrotava, aliás, dinheiro: negócios mais do que escuros. Na fachada, uma limpeza imaculada: um posto importante num ministério, dedos recheados de anéis e poder, uma casa do tamanho de um palácio e várias outras em exóticas estâncias balneares, uma colecção de automóveis topo de gama, várias contas bancárias, e um cinto a rebentar pelas costuras.
Dona Mínima não perdeu tempo: mandou uma mensagem fulminante via correio interno de funcionários de variadíssimos estados e respectivos amigos, que correu de boca em boca: Venha depressa. Sua excelentíssima mãe está a morrer.

Apesar de nunca ter dado notícias em trinta anos, o homem não esquecera a mãe. Lá no fundo de si, temia aquele encontro. Dona Mínima acertara em cheio: morria de vergonha. Vergonha de ter fugido. Não sabia porque o fizera, nem porque o caminho de volta a casa sempre se lhe afigurava tão penoso e irrespirável.

A notícia de que ela estava a morrer, contudo, deu-lhe um terror sem tamanho. E voltou. Tinha de voltar. Era o medo que conduzia os seus passos. Quando parou o carro à porta de casa (um Mercedes último modelo com ar condicionado, piloto automático, televisão e consola de jogos a bordo), estremeceu. Aquele lugar não tinha mudado. Estava igualzinho ao que se lembrava. Estranhamente, os seus olhos é que já não conseguiam ver as coisas do mesmo tamanho. Parecia que estava diante da miniatura de tudo o que se lembrava de existir. Só as árvores eram maiores do que o mundo. Pareciam ter-se alimentado do seu medo.

Indiferente aos olhares curiosos que o espreitavam da porta (uma multidão de crianças acorrera ao barulho do carro, coisa rara ali) penetrou nas sombras da casa e avançou até ao quarto. Muito devagar, começou a distinguir o vulto da cama, o branco dos lençóis, a figura da mãe deitada (quase irreconhecível, meu Deus...) e uma velha senhora muito pequena, do tamanho de uma criança, sentada ao lado da cama. O cheiro a cebola picava nas narinas, e da janela entreaberta corria uma brisa morna, que inundava o quarto com o odor da terra ressequida ao sol.

A mãe olhou-o sem acreditar. A pele à volta dos seus olhos estava morta, calcinada. Dona Mínima amparou-lhe o gesto de se erguer na cama.

«Filho...»

Apenas um fio de voz, restos de sede na secura da terra. Quis dizer-lhe o nome e a boca não desenhou as palavras.

Quis depois sorrir-lhe e ficou estancada no espanto. Não lhe encontrava os olhos. Estavam escondidos atrás das lentes espelhadas de uns óculos estupidamente grossos. A mulher abriu a boca e desta vez não saiu som algum.

O homem continuava pasmado no frio que lhe crescia na barriga. Não se atrevera a encarar o olhar da mãe, aquele olhar que adivinhava acusador. Engoliu em seco e só foi capaz de dizer, tão baixinho que mal se ouviu:

«Mãe?»

Ela não respondeu. Procurava o bebé que nadara no seu ventre, a criança que brincara, nua e descalça, no terreiro lá fora, o rapaz decidido que partira sem olhar para trás, e não o encontrava. Cravou os olhos avidamente secos no corpo imenso daquele homem: percorreu-lhe o cabelo, cheirou-o, espreitou-lhe os dentes, deteve-se nos ombros e nos braços – quase lhe tocou o peito – sentiu-lhe a gordura no ventre, em vão: o olhar não pegava, não segurava, não beijava. Aquele não era o seu filho; nunca fora sequer a pobre planta que ela regara com tanto desespero e tão pouco alento.

Pior do que perder um filho é nunca poder encontrá-lo. Encará-lo. Enxergá-lo.

O homem continuava parado. A boca do estômago ardendo em labaredas frias.

E então aconteceu um milagre: uma humidadezita à beira das pestanas, depois uma gota de água que correu cara abaixo –, e inundava as chagas da terra com a carícia da chuva tão esperada – e finalmente o mar inteiro jorrando dos olhos da mulher, aqueles olhos que tinham perdido o brilho e a sede. E ela chorou, chorou, chorou, derramou a alma, espezinhou lamentos, até o lençol ficar húmido e o ranho lhe pingar do nariz com a força das lágrimas. Até engolir no sal o sumo do seu desgosto.

Recuperou a saúde, recuperou a idade, diz-se até que recuperou o riso. E ainda o enterrou, àquele filho que nunca encontrou, e que enfartou de tanto abarrotar de comida, dinheiro e enganos.

Pior do que perder um filho, é nunca o dar à luz. Nem ao vento. Nem à água.

Pior do que perder um filho, é perder-lhe o caminho, é prender-lhe o destino.


(conto publicado na Revista Ler de Dezembro de 2014, com uma belíssima ilustração de Pedro Vieira)

sexta-feira, janeiro 23, 2015

O melhor dos livros

Chegar a Londres de coração cheio, depois de uma semana de entrega e partilha. O melhor dos livros, para quem os escreve, são as portas que eles nos abrem: primeiro, durante a sua escrita, e depois, quando andam pelas próprias pernas e nos levam ao encontro de pessoas extraordinárias. Essas pessoas, os leitores, são extraordinárias na medida em que nos abrem outras portas, algumas em que não tínhamos reparado, porque cada olhar abarca um horizonte que nem sempre está ao nosso alcance. E o melhor de tudo é, no fim, assistir ao todo que se abre diante dos nossos olhos, e receber a dádiva de tantos e diversos olhares que formam esse todo. Um livro começa por ser um caminho que vamos desbravando com palavras; palavras que arrancamos à machadada, palavras que tocamos sem usar as mãos, de tão frágeis. Os caminhos desaguam em rios, e os rios, já se sabe, não se esgotam no mar, antes sobem às alturas em desalinho de nuvens e oceanos de chuva. Quando terminados, os livros voam-nos das mãos, e dos ramos onde pousam não avistamos a mais pequena sombra. É essa a dádiva dos leitores: devolvem-nos o canto dessas aves solitárias; das palavras que já não dizem aquilo que escrevemos. Os leitores habitam outro território, e quando entramos pela porta que nos abrem, é com emoção que descobrimos o nosso livro na sua estante: os ramos em que pousaram as palavras que deixaram de nos pertencer, mas ainda são as nossas.

Muito obrigada extraordinárias leitoras: Ana Catarina, Isabel, Sofia, Alexandra e Teresa. Muito obrigada extraordinários leitores do grupo de Algés e Oeiras (um agradecimento especial à Rita).