quinta-feira, setembro 22, 2005

CONVERSA NECESSÁRIA

Quando vou buscar o David, fico no recreio à espera que ele desça com os colegas e as professoras. Normalmente, eles ficam todos em grupo, ao pé das escadas que dão acesso à porta por onde entramos. Depois ainda há outro grupo de meninos que sai pela mesma porta. Quando as crianças descem, os pais aproximam-se do grupo e os meninos vão sendo entregues aos pais pelas professoras. Isto é o que deveria acontecer, mas claro que nunca é exactamente assim. A maioria dos miúdos, quando vê os pais, precipita-se para eles, sem olhar para trás, e no meio da confusão são muitos os meninos que saiem do grupo sem a professora dar por isso. É claro que nenhum menino sai do grupo sem ver o pai ou a mãe ou alguém conhecido, mas estas coisas a mim deixam-se sempre ansiosa e a imaginar cenários de risco. E se algum dia chega ali um qualquer que diz a um miúdo, olha, eu conheço o teu pai, anda comigo, e o miúdo até vai e a professora nem repara? Isto andava a fazer-me espécime, cada vez que ia buscá-lo ficava a remoer pensamentos obscuros. Até que a solução (a solução não existe, pronto, mas a forma de minimizar os riscos possíveis) ocorreu-me. E até foi bem simples. É preciso é perder aquele pudor que nos faz querer matê-los eternamente na redoma da nossa protecção.

Engoli em seco, ganhei coragem (foi preciso, sim!) e calmamente disse-lhe. Disse-lhe que quando ele está à minha espera e me vê não deve vir para mim a correr, mas esperar que eu chegue perto da professora e lhe diga que o vou trazer, para a professora saber que ele veio comigo. Disse-lhe que se algum dia eu ou o pai não pudermos ir buscá-lo avisamos a professora e irá outra pessoa, que ele conhece, mas que nesse dia a professora já estará avisada. E disse-lhe que se algum dia alguém chegasse ao pé dele e lhe dissesse que conhecia a mãe ou o pai dele, e que vinha buscá-lo, para ele nunca, mas nunca acreditar. Mesmo que fale em português. Para nunca acreditar em alguém que lhe diga seja o que for e que queira ir buscá-lo. Para nessa altura dizer à professora. E acho que ele entendeu. Olhou para mim e perguntou: "Mas se isso acontecer quer dizer que são maus, não é?", "Sim, filho, há pessoas más que às vezes levam os meninos e é preciso muito cuidado", "E assim a professora podia dar-lhe logo um pontapé, não era?", "Podia chamar a polícia, que era melhor!".

Pronto. Claro que isto não me deixa descansada a 100%, nada nos deixa, é preciso estar sempre alerta em assuntos destes. Mas é indispensável que eles também estejam por dentro da situação. E custa, é um disparate, mas custou-me, o que é que querem? Custou-me roubar-lhe assim um pouco da inocência. Custou-me mostrar-lhe uma fatia tão horrível da realidade. Custou-me acordá-lo um pouco da ilusão de que os maus só existem nas estórias. Mas no fundo acho que ele já sabia. E depois pensei, sim, ele está a crescer, e isso faz com que tenha cada vez mais noção da realidade. Da realidade, toda, inteira, e cada vez mais vai ser esta, a realidade fodida que é a vida. Apesar de os querermos poupar, há sempre um dia em que não dá mais para adiar conversas destas. Chatas, lixadas, mas necessárias.

2 comentários:

papu disse...

Eu também tenho muito medo, alex. E acho que não podemos ignorar o medo: temos de olhá-lo bem nos olhos e "pegá-lo" de caras. Temos de nos defender. Temos de aprender a viver com o risco, mas também sem deixar que isso nos impeça de viver a nossa liberdade. Sem deixar que o medo ensombre a nossa vida.

Obrigada pelas palavras e pela visita.

Anónimo disse...

Olha ... aqui encontro-me, re-encontro-me, re-encontro-nos.


o medo de os perder ...