quarta-feira, fevereiro 22, 2006

LIVRO DE QUARTA

Isabel Allende, Paula

Isabel Allende também é umas das minhas escritoras favoritas.

O livro dela que mais me tocou foi sem dúvida, este. Que mais me tocou e que mais me impressionou.

Escrito à cabeceira do leito de morte da própria filha, é, ao mesmo tempo, um desabafo sobre a ansiedade e o terror de toda a situação vivida, e um balanço de vida, do passado, da história pessoal e familiar.

Nunca alguém se expôs desta forma num livro. Talvez porque, no início, o intuito não era escrever um livro, mas sim devolver a memória à filha doente, quando esta estivesse recuperada.

É assim que o livro começa, mais ou menos: "Ouve, Paula, vou contar-te uma história, para que, quando acordares, não te sintas perdida." É uma dádiva à filha, mas também uma história que se conta na cabeceira de uma cama, esta, não antes de o sono vir, mas antes de a morte vir (o sono eterno).

E esta história transporta-nos para o coração desta mãe, para o seu presente e para o seu passado, para a sua alegria e para a sua tristeza, para toda uma vida subitamente estagnada e assombrada pela doença da filha. É um caminhar lento, um passo após o outro, por um atalho, onde o medo, a morte e a vida se entrecruzam até à loucura. É a súplica de uma mãe pela vida da filha, a esperança da saúde devolvida (e nós esperamos e ansiamos com ela, mesmo sabendo de antemão o desfecho trágico), a prece mais humilde e mais pura de um ser humano completamente à mercê do destino cruel, de uma chuva moribunda de que não consegue fugir nem abrigar-se. Uma a uma, geladas e fatais, as gotas de água encharcam-lhe o corpo desesperado e angustiado; uma a uma, as garras da loucura tomam conta da sua sanidade; uma a uma, as gotas de sangue da morte tingem o seu rosto pálido. É também a história de uma aceitação resignada, a princípio revolta e negação furiosas, mas que pouco a pouco vai adquirindo os contornos de uma tranquilidade sofrida, de uma paz triste de muitas lágrimas, de um consolo aflito como um abraço amigo.

Mas não se pense que é um livro mórbido, desamparado, deprimido. Não se pense que é um livro rasgado pela ansiedade e visitado pela melancolia. O livro não é sobre a morte; ou melhor, é também sobre a morte, mas é acima de tudo sobre a vida; o livro é cheio de vida, a vida que sofre, que chora, que desespera, que luta, que grita, que não se conforma, que sente a tristeza até ao limite, que busca um entendimento, que desiste, que vai ao fundo, que morre. O livro reúne todas as nossas lágrimas, possíveis e imaginadas. O livro retrata a emoção da vida, os caminhos, as curvas das estradas, os atalhos, os precipícios, os abismos. O livro é uma viagem ao inferno, ao inferno dos nossos medos mais terríveis; uma viagem que nos fortalece e nos acende novos sentires e novas incertezas. O livro abana os pilares da nossa existência como um terramoto, apaga-nos as luzes para que possamos ver com os olhos fechados aquilo que geralmente não está à luz nem à vista. O livro é um testemunho grandioso de uma alma que sente e que vive intensamente cada momento da vida como uma dádiva preciosa, e que mesmo dentro do poço escuro da perda mais terrível conseguiu sentir e fazer nascer em si a força necessária para ir ao fundo, bater no fundo e erguer-se. Mais triste, mais envelhecida, mais perdida, quebrada por dentro e sem esperança, mas mais sábia, mais sentida, mais viva, mais sofrida e mais forte.

Este livro faz-nos chorar e faz-nos rir, faz-nos sorrir e faz-nos explodir de dor, faz-nos vibrar, comove-nos profundamente, até ao âmago do nosso ser. E dá-nos também a nós, algo muito precioso: a possibilidade de nos confrontarmos com os nossos limites, com o nosso sofrimento, com o desespero, com o fim da vida. Faz-nos viajar dentro dos nossos sentidos, abre-nos a porta para a essência oculta da nossa vivência. É um livro que entra pelo corpo e pela alma e abala qualquer coisa dentro de nós. Depois de o lermos, não seremos mais os mesmos. Saímos da sua leitura com o espectro das cores afectivas mais alargado, com novas cores que desconhecíamos, cores invisíveis até olharmos nos olhos a verdade e a potencialidade do verdadeiro sofrimento. E crescemos por dentro, e aprendemos tanto, com esta história. Real.

11 comentários:

Bird disse...

Não o li mas a tua descrição chega para parar e pensar muito... na efemeridade da vida, no que recusamos por vezes porque o temos tão perto, no amor que insiste em ficar... em... em...

E quem escreve maravilhosamente???

Tu
Tu
e
Tu

não só porque és sem falhas mas sobretudo porque entras por dentro das palavras te apoderas dos sentidos e dás o que muitas vezes elas não têm.

Beijo muito muito grande
(P:S: recebeste o meu sinal de fumo??? )

CLS disse...

Já li. Lindo e comovente, os sentimentos da mãe entranham-se em nós, vive-se o livro intensamente até ao fim. Boa escolha.

Vanessa disse...

deve ser lindo,e que bela descrição, obrigado linda,comoveste-me...

fee disse...

Já li e impressionou-me bastante, mas parece-me que tenho mesmo de ler de novo, para reler, agora com outro tipo de abertura de espírito!
Obrigada por nos contagiares com a tua descrição!
Beijinhos

merdinhas disse...

Não li mas sei da história. Reconheço-lhe o mérito embora não seja a literatura que prefiro...

Sofia Pinheiro disse...

Este ainda não tive a coragem de ler, mas gosto muito da Isabel Allende.

papu disse...

A todos: leiam, leiam, leiam!

E acreditem, este livro modifica-nos. Transforma-nos. Faz-nos crescer.

Não tenham medo do tema, porque o que vão encontrar é Amor, Carinho, Ternura, Dádiva...

Também vão esbarrar no sofrimento, claro, mas o sofrimento faz parte da vida, a dor pertence-nos, está nos nossos alicerces e ajuda-nos a crescer...

faz de nós homens e mulheres mais fortes e mais sabedores da vida.

Leiam! :)

Obrigada pelos comentários e um beijinho a todos.

papu disse...

Rectifico: aos que ainda não leram ;)

Marta disse...

Já li, gostei muito, e amei a maneira como o descreves.
Fico com vontade de reler.

Beijinho

Unknown disse...

Já o li há uns anos.
Tremendo.
Embora goste mais dela num registo diferente.

Fiquei a conhecer melhor a mulher que há na escritora, uma grande Mulher, sem dúvida. A Paula morreu, mas ficou imortalizada na escrita da sua Mãe.

beijinho

Mónica disse...

tb é uma das minhas escritoras favoritas!
fartei-me de chorar qdo li esse livro por razões que não importa aqui, atrevi-me a fazer analogias em hora errada!
esse livro tem que ser lido em tempos de felicidade senão é demolidor!