segunda-feira, julho 03, 2006

AINDA O SILÊNCIO DOS INOCENTES

É raro, raríssimo, mas de vez em quando eles lá fazem ouvir-se.
Deve ser do calor, não sei.
Afinal, as criaturas também têm direito a passar-se com o calor, ou não?

E, de vez em quando, um ladrar súbito atordoa os ares.
E sempre que tal acontece, volta a dar-se o mesmo milagre nos meus ouvidos. Ou na minha cabeça, não sei bem. Talvez numa imprecisa região do cérebro, onde confluem afectos, memórias e sons.
Sempre que os oiço, volto a ouvir mais nitidamente o seu silêncio.
Ou melhor, só sinto verdadeiramente o seu silêncio quando os oiço.
Quando não os oiço, já sei que eles não ladram, mas saber que não ladram é completamente diferente de sentir a falta do seu ladrar.
Essa só a sinto mesmo quando os oiço.
E é incrível o que o ladrar de um cão traz consigo.
O ladrar dos cães é tão antigo como a própria humanidade.
O ladrar dos cães faz parar o tempo. Transporta-nos para outras dimensões.
Tem o poder de nos levar para outros sítios, de nos restituir memórias intactas, que julgávamos perdidas.
O ladrar de um cão no silêncio da noite, por exemplo, é uma companhia. E quando a esse ladrar respondem outros ladrares, diferentes de intensidade e timbre, mais e menos distantes, então o nosso coração também ladra no peito.
Ladra de vontade de se reunir à matilha.
O ladrar dos cães anuncia proximidade de casas, pessoas, abrigos. Para um viajante solitário é como chegar a casa, para um marinheiro distante é como atracar no porto.
O ladrar de um cão transporta-me para a infãncia, para aquele pontinho minúsculo onde estou deitada na cama, sem conseguir adormecer devido ao bafo de fantasmas e medos, e de repente aquele som familiar corta a escuridão e entra na minha solidão. Devolve-me a realidade, a claridade da luz do dia, o sol a pino lá do alto a afagar as colinas da serra com o seu calor ancestral. E a minha alma pequenina aquece com ele. Fecho os olhos e quando os reabro a escuridão tem novas cores, já não me ameaça, e os velhos fantasmas sorriem para mim.

Juro-vos que é verdade.
O ladrar de um cão tem o poder de nos tirar de dentro do poço da angústia.
O ladrar de um cão é uma linguagem mágica. E essa linguagem é comum aos seres humanos.
O ladrar de um cão é um aviso, um chão, um tecto, um alerta, um sinal, um postigo, um abrigo.

O silêncio dos cães não tem cor nem coerência.
O silêncio dos cães é uma aberração da natureza.
O silêncio dos cães faz-nos sentir estrangeiros no mundo. Mais ainda do que já somos.
O silêncio dos cães encerra-nos as portas para a clarividência de outras almas.
O silêncio dos cães é pesado, é estranho, é complexado.
O silêncio dos cães instala-se nos ouvidos como um parasita, e afasta-nos de nós mesmos, da nossa natureza, da nossa certeza de segurança, da nossa primeira linguagem.

Não percebo, nunca vou perceber isto.
Nem quero.
Lembro-me do Rumble Fish, que vi há séculos, daquela cena em que os animais da loja são libertos, e correm em debandada para a rua.
Eu apetecia-me volatilizar-me em sopro de vento, e ir por aí, por esses quintais fora, a sussurrar aos ouvidos dos cachorros: "Ladrem! Ladrem! Ladrem!"

2 comentários:

CLS disse...

O ladrar dos meus cães de madrugada às vezes aborrece-me, mas tb me conforta saber q eles estão lá. E que estão atentos.
Deve ser muito estranho, cães silenciados.
Bjs

Sara Veiga disse...

Além de dizer que o teu texto é muito bonito, só me apraz comentar que gostava muito que os meus vizinhos partilhassem da tua sensibilidade.
Por sentirem um cão, seja o meu ou outro, ladrar porque algum estranho anda pelas traseiras, reclamam ao condomínio e despoletam cartas de advogados!

:D:D:D

É óbvio que não falo de ladrar insistente e permanente. Falo de coisas pontuais, de um latido provocado por uma pessoa que eles querem afugentar das nossas casas (om razão), de um barulho estranho que eles desconhecem.

As pessoas estão feitas em máquinas e tudo o que não seja o ruído mecânico de um ar condicionado ou de um carro, é estranho para elas.

Viva nós que gostamos dos ães e do seu ladrar!!

Beijinhos,

Sara