terça-feira, julho 11, 2006

NASCI

há 36 anos atrás, em Lisboa, num dia de muito calor. Naquele tempo ainda não se faziam ecografias de maneira que o sexo dos bebés era uma incógnita até ao dia do nascimento. Mas a minha mãe, assaltada por uma daquelas intuições próprias das mães, desde o princípio que teimava que eu era uma menina. E baptizou-me muito antes de eu nascer, com o nome que passou a ser o meu. Curiosamente, quando comecei a falar e ela a tentar que eu repetisse o meu nome, sílaba a sílaba, eu retorquia sempre prontamente com "Papu!". E passei a ser a Papu. É verdade, Papu é mais que um nickname usado para escrever aqui: é o meu verdadeiro nome, apesar de não ser o que aparece no Bilhete de Identidade.

Quando entrei para a escola primária o nome manteve-se, e eu assinava sempre por baixo de cada texto ou trabalho "Papu". Até que um dia a professora explicou-me que aquele não era o meu nome, e que eu teria de assinar com o meu nome verdadeiro. Fiquei contrariada, mas não disse nada e obedeci prontamente. Porém, no meu íntimo, aquele não era o meu nome, era outro. E sempre foi assim, pela vida fora. Só deixei de ser Papu durante algum tempo, quando entrei na escola preparatória, até mais ou menos a meio da Faculdade, o que dá para aí quase uma década. Desde então o Papu voltou a ser o nome por que mais pessoas me conhecem. É claro que nas situações oficiais e mais formais é o outro nome que aparece, mas para mim esse nome representa sempre alguém que de facto não sou eu.

Da minha infância as recordações mais vivas são das férias intermináveis que passava em casa dos meus avós, em Estremoz. Nessa altura, essa cidade era um paraíso de calma e sossego, com pouquíssimos carros a andar nas estradas, de modo que as crianças tinham uma liberdade de andar pela rua sozinhas inimaginável nos dias de hoje. Lembro-me das vezes em que chegávamos, vindos de Lisboa, na camioneta da Rodoviária, e de fazermos à noite o percurso até casa dos meus avós, que ficava fora de muralhas. À luz dos candeeiros, o silêncio nas ruas era total, apenas cortado pelo eco dos nossos passos na estrada de alcatrão (nunca andávamos nos passeios) e pelo canto dos grilos.

Mas não era só à noite que o movimento de carros era mínimo, de dia era igualmente raro vermos um carro andar. Sempre andei sozinha com o meu irmão ou os meus primos pela cidade, e não éramos as únicas crianças a fazê-lo. Mais a mais, toda a gente se conhecia. Lembro-me que quando saíamos com o meu avô ou com a minha avó tinhamos de parar constantemente, porque eles sempre encontravam conhecidos na rua que era preciso cumprimentar e às vezes a conversa prolongava-se por alguns minutos, para grande desespero nosso, das crianças, que sempre tinhamos pressa de andar.


A casa dos meus avós tinha um quintal que era enorme aos nossos olhos (de facto era - e ainda é - grande, mas na perspectiva das crianças as coisas sempre ganham outra dimensão de imensidão). Nesse quintal nós passávamos a maior parte do dia a brincar, quando o tempo o permitia, e no calor tórrido do verão tomávamos banho num velho tanque da roupa, cuja água gelada sempre nos fazia tremer de frio, mesmo quando o calor apertava.

Ao lado dessa casa havia um outro tanque, este maior, quase do tamanho de um lago, onde as mulheres vinham todos os dias lavar a roupa. Eu adorava ficar a vê-las, cá de cima do quintal da casa. Houve até uma altura em que insisti que queria ir lavar roupa também, e acho que uma vez até fui, apesar dos protestos da minha mãe e da minha avó, devido ao facto de acharem aquilo muito pouco higiénico. As mulheres usavam uma placa de cortiça que punham em cima da pedra branca de mármore da borda do tanque, e era em cima dela que ensaboavam a roupa. Cheirava a sabão azul e branco e a sol, e eu cheguei a ter uma dessas placas de cortiça, de tamanho pequeno, que me ofereceu, acho, a senhora que trabalhava em casa da minha avó. Ela também lavava a roupa nesse tanque, e era na sua companhia e da filha, de quem eu gostava muito e com quem eu sempre brincava, que passei algumas tardes no tanque, vendo as mulheres lavar a roupa.

Eu sentia-me bem ali, gostava de estar ao pé daquelas mulheres e observar o ritual da lavagem da roupa. Grande parte delas eram ciganas, pois em Estremoz existe uma grande comunidade cigana perfeitamente integrada na vida social da cidade. Enquanto lavavam a roupa conversavam umas com as outras, não me lembro do quê, mas para mim não havia nada melhor do que passar ali a tarde ao som das suas vozes. Lembro-me de uma vez em que li, numa entrevista no jornal a já não sei quem, que essa pessoa nunca se tinha sentido bem no meio de doutores, que era no meio de pessoas simples que se sentia em casa. E recordava a sua infância passada entre pescadores, no cais, e de ficar a vê-los enquanto os seus dedos pacientes teciam lentamente as redes de pesca. Lembro-me de ler isto e achar que podia ter sido eu a dizê-lo, apenas substituiria os pescadores pelas lavadeiras daquele tanque da minha infância. Também nunca me senti à vontade no meio de doutores, e já senti que às vezes a minha maneira simples de ser choca em certos núcleos de pessoas consideradas mais sofisticadas.

Sou daquelas pessoas que quando chega a um sítio novo cheio de gente desconhecida, só lhe apetece enfiar-se num buraco. Nunca gostei de estar no centro das atenções, e sempre fui portadora de uma timidez que às vezes pode ser confundida com indiferença. Mas as pessoas nunca me foram indiferentes, pelo contrário, sempre quis ir ao encontro delas. Só que a timidez sempre me impediu de dar os passos necessários. Se calhar por isso nunca fui uma pessoa popular. Nunca tive muitos amigos, mas também nunca o desejei. Sempre achei que, por vezes, e na amizade sem dúvida, quantidade é oposto de qualidade.

Não se pode dizer que tenha mudado radicalmente, ainda sou uma pessoa tímida e insegura, simplesmente já não encaro isso como um defeito, faz parte de mim. Acho que o passar dos anos, se alguma coisa de novo trouxe, foi o compreender-me e aprender a aceitar-me tal como sou. É claro que há sempre coisas que a gente gostaria de mudar em nós, e algumas até lutamos para que isso aconteça, mas no essencial somos os mesmos, agora e antes.

(publiquei este texto há um ano atrás, e quando já estava decidida a deixar passar este dia em branco, deu-me vontade de republicá-lo, de o partilhar novamente)

20 comentários:

Bird disse...

Tens memórias que te alimentam a serenidade mas que te avivam a curiosidade e sobretudo uma grande sensibilidade.

Neste dia especial, dou-te o meu abraço forte e todo o meu respeito.

PARABÉNS
P
A
P
U

E...

que o teu olhar se encha sempre desta simplicidade pela vida.

Beijo

Anónimo disse...

Lindo o teu "nasci". Já umas lagrimitas teimaram em cair com essas recordações tão boas passadas em casa dos Avós. Recordar e evocá-los é sempre um prazer.Até mais logo, Beijinhos

Sara Veiga disse...

PARABÉNS!!!!

:)

que dia bonito para se nascer!

Um beijinho cibernético de quem ficou curiosa para saber o teu nome real.

Pensei que Papu tivesse a ver com aquela personagem dos livros de escola do meu tempo :)

Pim disse...

PARABÉÉÉÉÉÉNS!!!!!!!

Bolas, um gaijo tá dias sem dar aqui um saltinho e, quando volta, pimba, acerta em cheio!! Maravilhaaa!

Bjinhoooooooooooooo :-))

papu disse...

Já cá estou!

Florinda e Liliana: muito obrigada! beijinhos :)

Beijinhos, mãe. Adorei os vossos parabéns ao telefone :)

maracujá: muito obrigada e beijinhos. Esses livros do papu já não são propriamente do meu tempo ;) nessa altura já tinha acabado a primária e estava no 1º ou 2º ano do ciclo, não me lembro bem. Sou, portanto, anterior a eles ;)

papu disse...

Olá Pim! :)
Muito obrigada e um beijão para ti e para as tuas pinxejas :)))

Anónimo disse...

Eu sei que já é 1:33.

PARABENS !!!!!!!!!

Uma noite feliz já que nao vim a tempo para o dia. Feliz Aniversário Papu.

papu disse...

Ó minha linda! Tenho-me lembrado tanto de ti! Um beijão muito grande e muito obrigada! :)))

V disse...

Olá Papu,
não resisti e vim desejar-lhe um feliiiiz Aniversário!
E que todos os teus dias continuem a ser plenos de alegria e simpatia.

Beijo grande para ti

papu disse...

Muito obrigada Vivis :)

Um beijo pra ti também

Rita Quintela disse...

Parabéns e um beijinho!

S disse...

Lindo o texto, as memórias, a descrição pormenorizada!
Muitos parabéns...
S

B-Good disse...

Tou atrasada para a festa??
Ja apagaram as velas??
ooooooooooooooooooooohhhhhhhhhhhhh...
não faz mal: toma lá muitos beijinhos de Parabéns!!

papu disse...

B Good: nunca é tarde para beijinhos desses :)

Sofes e Rita: muito obrigada e beijinhos também para as duas

José Antunes Ribeiro disse...

Parabéns,Papu!
Cheguei atrasado, também me lembro bem do tanque colectivo das mulheres da minha aldeia...E muitas vezes fiquei a ouvir a minha mãe e as comadres...É a infância, o nosso país, talvez o único verdadeiramente nosso...Por isso o seu texto é muito bonito!

Um Beijo de parabéns,
J.A.R.

Lua disse...

olá Papu e muitos parabéns. Adorei a galeria dos trabalhos das crianças. Está fantástico

papu disse...

Olá José. Muito obrigada, um abraço para si.

Lua, muito obrigada. São coisas que eles fazem, umas aqui, outras na escola. Já temos uma bela colecção :)
beijinhos

CLS disse...

Atrasados, mas cá vão: Parabéns!
Adorei o teu relato de memórias :)
Bjs

papu disse...

Obrigada, C.
beijo

Alex disse...

És distraída.
Li, há dias, um texto que te foi dedicado. Não te digo onde. Procura!

Alguém que te deixou os Parabens aqui.


Encontra :))