sábado, setembro 23, 2006

COMUNICAR

Necessidades especiais foi o tema da aula passada do meu curso. Special needs. Veio uma formadora de fora falar do assunto, uma senhora de idade indefinida entre os 55 e os 65 anos (sou bastante má a avaliar idades), embora os olhos e a jovialidade estivessem entre os 25 e os 35. Trabalha na área - dá apoio a crianças com necessidades especiais, em várias instituições. Realmente, não há como ouvir alguém que está em contacto com a realidade prática falar. É sempre uma experiência enriquecedora.

Ela falava pelos cotovelos, apesar de só ter dois. E depressa. E eu entendi tudo. palavra, entendi tudo, todas as palavras. Apesar de ela falar a 120, consegui destrinçar todas as palavrinhas. Isto realmente é estranhíssimo. É que há pessoas que eu não consigo entender - há algumas então que quando abrem a boca eu não entendo uma única palavra. Tudo deprende do ritmo, da acentuação, do accent.

E, enquanto a ouvia falar sobre dificuldades de comunicação, de compreensão e elaboração da linguagem e do discurso, ia pensando como há um paralelo extraordinário entre a situação que algumas crianças com dificuldades na área da linguagem vivem e a minha situação - a nossa, a daqueles que, como eu, têm de falar e se exprimir numa segunda língua. Tal como essas crianças, que quando ouvem uma frase mais elaborada, só percebem uma ou duas palavras, também nós, muitas vezes, quando ouvimos, não entendemos o significado de todas as palavras que nos dizem, mas apenas o de uma, duas ou três - e é a interpretação correcta dessas palavras chave que nos leva à integração do que ouvimos num contexto particular, e que nos traz, por fim, a compreensão global do que nos foi dito.

Estamos assim, as pessoas que se vêm forçadas a aprender uma língua estranha para comunicar no seu dia-a-dia, numa posição privilegiada para entender as dificuldades destas crianças. A linguagem é, sem dúvida, a ferramenta mais eficaz que nos liga ao mundo e aos outros. Mas há outras. E há muitas maneiras de ajudar as crianças com dificuldades nesta área. Sentadas no chão, em círculo, assistimos a uma demonstração do que pode ser uma atitude terapêutica e ao mesmo tempo pedagógica. Vimos como por vezes os adultos têm a tendência a sobrecarregar as crianças com perguntas, invadindo o seu espaço de forma intrusiva, e agravando dificuldades já existentes. É preciso que adoptemos uma atitude completamente inversa. Poucas palavras, nada de perguntas. Associação de imagens às palavras. Em vez de dizermos: são horas de ir para o recreio, mostrar uma imagem e dizer apenas: recreio. Utilizar a linguagem como ponte para entrar no mundo da criança, limitando-nos a descrever o que ela está a fazer.

Esta perspectiva de encarar as necessidades especiais essencialmente como uma perturbação da linguagem é um pouco redutora, no entanto (quanto a mim). Aliás, o que é redutor é encarar a dificuldade a nível da linguagem como o motor e não como a consequência de uma dificuldade mais generalizada na relação e comunicação com o mundo. Não há nada a fazer, a minha abordagem da dinâmica psicanalítica da personalidade faz-me ver sempre as coisas através da relação. É na relação que está tudo. Nós crescemos e desenvolvemo-nos na e pela relação. Relação com a mãe, com o pai, com os irmãos, com os tios, com os avós, com os vizinhos, com os amigos, com o mundo. Quando há uma perturbação no desenvolvimento há também uma perturbação na relação.

Não vale a pena ajudar as crianças na parte linguística, apenas. Claro que isso vai dar-lhes ferramentas para que possam comunicar melhor e entender melhor o mundo que as rodeia, e, consequentemente, vai melhorar a sua relação com o mundo e com os outros. Mas se não entendermos que é a relação com o mundo que está perturbada, e nos restringirmos apenas a melhorar a comunicação, que é uma consequência dessa perturbação, não estamos a fazer nada. Ou melhor, estamos a dar uma ferramenta a alguém que não a sabe utilizar.

É na relação que devemos procurar as soluções. É na expressão emocional das dificuldades relacionais que está a verdadeira ajuda a estas crianças, quanto a mim. Não é suficiente ajudá-las na comunicação com o mundo, dar-lhes a arma da linguagem e do acesso à representação da palavra, sem entender porque é que essa comunicação ficou perturbada. O que leva uma criança ao retraimento e à descompensação linguística pertence à esfera emocional, é uma dificuldade relacional, afectiva. Sem esta área trabalhada não temos progresso real.

De que me vale saber falar e entender tudo o que me dizem, se sinto que nada tenho para dizer e, o que é pior, que ninguém vai ouvir-me; se tudo o que me dizem me deixa triste, se o que me dizem me atormenta e me confunde?

No fundo, é, mais uma vez, como aquela pessoa que está aprendendo uma língua nova: no princípio, temos medo de cair no ridículo, de errar, de pronunciar mal as palavras, de dizer disparates, temos medo de não entender o que as pessoas nos dizem e de, por isso, as pessoas perderem o interesse em ouvir-nos. Temos medo de fazer figura de ursos. É a nossa confiança que está em causa, e, num extremo, a nossa auto-estima. Só nos sentindo aceites, só sentindo que os outros têm interesse em ouvir-nos, só ganhando confiança é que vamos conseguir expressar-nos numa língua estranha. E não tendo medo de errar, de ser ridicularizados pelo erro. É exactamente a mesma coisa. A criança só comunica com o mundo se sentir que o mundo a ouve. A criança só começa a comunicar se sentir que o que tem a dizer é importante. A criança só tem vontade de comunicar se se sentir aceite e ouvida. A comunicação, o desejo de comunicar com o mundo, é o primeiro movimento da criança para fora, a primeira expansão do seu pequeno universo, do seu eu. Se esse movimento de procura do encontro com o outro não for bem sucedido, a vontade de comunicar ficará afectada, a energia vital ficará enquistada, a linguagem e a expressão verbal comprometidas.

1 comentário:

Alex disse...

E tu tens as "armas" todas para uma boa comunicação.