terça-feira, setembro 19, 2006

WELCOME TO THE REAL WORLD


Apresento-vos Jamie Oliver, o mentor da campanha Feed Me Better, desenvolvida ao longo do ano de 2005 em grande parte das Primary Schools em algumas áreas da Grande Londres e outras zonas do País. Este Chefe de Cozinha tornou-se popular quando fez alguns shows televisivos e publicou alguns livros de culinária. O propósito da campanha é banir o junk food das escolas, e tem tido sucesso.

Com 31 anos de idade, tem ar de puto reguila e rapidamente conquista a adesão das crianças. Organizou encontros com os pais e os miúdos nas escolas, onde procurou chamar a atenção de ambos para as graves consequências para a saúde do tipo de alimentação correntemente praticado por aquelas faxas etárias. Em alguns desses encontros, despejou para cima de um pano enorme, do tamanho de um lençol, dois caixotes de batatas fritas, regou tudo com molho à base de gordura e juntou coca-cola por cima. Enquanto fazia esta mistura, perante o assombro da assistência, ia falando das consequências para a saúde de um tal excesso de gorduras saturadas na alimentação diária. O objectivo era enojar as pessoas, o que foi conseguido!

De outras vezes foi para as escolas e pediu aos miúdos que despejassem os snacks de junk food que tinham nas mochilas para um saco, a troco de alguns pence suficientes para uma refeição equilibrada. Alguns miúdos não queriam alinhar, mas ele insistia e persuadia. Começavam então a chover pacotes de batatas fritas, chocolat bars, fizzy drinks e todo o género de snacks hiper-calóricos para dentro do saco. E, acreditem ou não, aquilo era o almoço daqueles miúdos.

Com uma roulote dessas de vender comida, montou um bar de snacks saudáveis num recreio de uma escola. Os snacks eram feitos à base de ingredientes frescos, na sua maioria vegetais e fruta. Os preços eram acessíveis. Os miúdos aderiram em massa.

Desde 2005 que a maioria das escolas do Borough de Greenwich confecciona as refeições com as receitas implementadas por esta campanha. Antes disso, as refeições escolares eram compostas por junk food. Isto nas escolas onde se faziam refeições.

Quando se pergunta aos miúdos se eles gostam mais da comida agora, a resposta é unânime: sim! As crianças reagiram muito bem à alteração das ementas. Estas crianças também foram educadas no sentido de reconhecerem a importância de uma alimentação nutricionalmente equilibrada, por isso muitas delas respondem que agora comem mais vegetais, e falam da importância que isso tem para a sua saúde.

Mas não foi só em Londres que esta campanha se desenrolou, também outras zonas do país fizeram parte da acção. Em algumas zonas rurais as dificuldades foram bem maiores, como por exemplo Lincolnshire. É considerada uma zona precária em termos de recursos, e a realidade da maioria das escolas era esta: não havia cozinha! O que quer dizer que as crianças não tinham uma refeição quente. O almoço delas consistia em pack lunches trazidos de casa, e não é preciso dizer no que consistiam, vocês adivinham... junk food.

Eram as próprias crianças a dizer que sentiam a falta de uma refeição quente: devido ao frio que no inverno se faz sentir naquela zona, sentiam falta de comer algo mais substancial. Como as escolas não tinham cozinha, a solução passou por procurar um local nas redondezas onde as refeições pudessem ser confeccionadas. Foi escolhido um Pub local. Esta iniciativa tinha de ter o apoio monetário dos pais, para começar. Foram feitas muitas reuniões com os pais, muitas acções de sensibilização, pois sem este apoio nada iria para a frente.

A primeira escola da zona começou então a dar uma refeição quente aos alunos, que era confeccionada no Pub local. Vimos então crianças que não sabiam comer com faca e garfo! Não estavam habituados a tal! De onde se depreende que, em casa, também não tinham esse hábito. Vimos muitos pais e mães torcer o nariz a estas inovações. E uma mãe a dizer, enquanto olhava para o novo menu, que as crianças não precisam de arroz ou massa todos os dias!

Entretanto, surgem problemas com esta primeira escola de Lincolnshire a aderir à campanha. O dinheiro escasseia, e, pior, a confecção da comida não está a seguir as normas regulamentares de higiene. É feita uma inspecção ao Pub. Vimos panelas a serem manejadas no chão, superfícies sujas, frigoríficos em estado lastimável, comida armazenada há muito tempo, já em estado pouco recomendável, até uma embalagem com comida estragada! As receitas estavam a ser alteradas, no sentido de darem menos trabalho e de ficarem mais baratas. O fulano que estava encarregue de cozinhar não tinha a mínima formação para esta actividade. Na verdade, nunca tinha feito este trabalho. Não era cozinheiro, era apenas o dono de um Pub a procurar desesperadamente não ter prejuízo.

Tenta-se o apoio dos pais, o que se mostra difícil. E então, surge a solução: entrar em contacto com produtores agrícolas da região, para que disponibilizem os ingredientes frescos necessários, estabelecer uma aliança com os restaurantes e hotéis da zona que estejam dispostos a colaborar na confecção das refeições, e fazer uma parceria entre escolas, produtores e restauração. Tudo isto com o apoio monetário dos pais, ainda fundamental. Nesta altura já se tinham conseguido ajudas financeiras governamentais, por isso havia a certeza de que se as pessoas se empenhassem em levar esta acção para a frente, o governo disponibilizaria mais ajudas. E foi o que aconteceu.

E está a acontecer, ainda. Neste momento, o governo disponibilizou novas verbas para obras de reformulação nas cozinhas, formação para pessoal, implementação da campanha em novas escolas, e foram criadas novas regulamentações a nível da alimentação escolar. Tudo isto aconteceu agora, não é fantasia, é realidade. Neste país, foi preciso um indivíduo comum, que por acaso era cozinheiro e tinha alguma popularidade, para que o panorama alimentar escolar, que era uma vergonha nacional, mudasse. Não houveram pais, nem mães, nem médicos, nem entidades de saúde, nem entidades responsáveis pela infância a mexer uma palha até ao início do século XXI em relação a esta matéria. E garanto-vos que se não fosse a vontade férrea deste rapazola hoje estava tudo na mesma.

Não estou a dizer mal dele, acho louvável o que ele fez. Só me confrange que mais ninguém tenha feito nada durante tanto tempo. E que, mesmo assim, ainda haja muitas crianças a comer diariamente snacks de junk food. É uma realidade alarmante: há muitos miúdos que, apesar de as escolas darem a refeição quente, continuam a comer pack lunch de comida fria: barras de chocolate e outras porcarias, batatas fritas, sumos, bolos, sandes... é este o almoço de muitas crianças!

Isto só tem um nome: ATRASO. O que se passa em algumas zonas rurais deste país, e não só, revela um atraso incomensurável e gritante. O nosso país, que viveu debaixo de uma ditadura de cinquenta e tal anos, e que, consequentemente, sofreu um atraso de desenvolvimento brutal, como todos sabemos, atraso esse que atingiu mais profundamente as zonas rurais e do interior, está muito menos atrasado, em relação a esta questão da alimentação, do que estas regiões do Reino Unido! Durante a ditadura em Portugal passou-se fome, muita fome, porque as pessoas não tinham o que comer. Mas hoje não há nenhuma escola primária no país, desde a Santa Terrinha no Sul até aos confins de Trás-os-Montes, que não sirva uma refeição de sopa, segundo prato e fruta, feita à base de ingredientes frescos! Não acredito que assim não seja! E sei que ainda há situações de miséria e de gente a passar fome (ai há, há!), mas aqui passa-se fome de uma maneira muito pior: não por falta de alimento, mas por se comer merda! Isto é incrível, mas é verdade: há aqui crianças a passar fome por terem uma alimentação completamente desequilibrada. Aqui não faz sentido falar em pobreza nem em miséria: as ajudas são uma realidade e ninguém morre à fome! Se a família tem um rendimento baixo, há ajudas, se está no desemprego, também, há subsídios para as crianças, não há desculpa para as pessoas não fazerem uma alimentação digna, mesmo nas zonas mais pobres!

Neste momento, o governo comprometeu-se a dar apoio a esta campanha até 2011. Penso que todas as escolas de Greenwich estão neste momento com as novas refeições. Na zona de Lincolnshire o balanço também acabou por ser positivo. Não sei como são as coisas noutras zonas em Londres. Mas sei que há muitas crianças que continuam a comer mal e porcamente. Sei que esta iniciativa corre alguns riscos se não houver o apoio dos pais e das escolas, no sentido de continuarem a reivindicar apoios e ajudas governamentais. Muitas das escolas aderiram e estão mentalizadas da importância desta iniciativa, outras há que ainda dão diariamente aos miúdos refeições à base de junk food... ainda... em pleno século XXI.


Se quiserem saber mais sobre este assunto, podem ir aqui.

2 comentários:

Kate disse...

Depois de ler isto não posso deixar de deitar cá para fora uma coisa que me anda a "moer" há algumas semanas.
E o que fazer quanto à alimentação dos jovens quando o erro não vem da escola mas sim de dentro de casa?
Passo a explicar. Há uns dias atrás, quando entreguei a minha filha de 4 anos na sala (da pré), apercebi-me que um menino ía iniciar o seu pequeno almoço. Espanto meu, tinha um snacks na mão. Não conseguindo conter-me, meti conversa com a educadora, ao que me responde "e às vezes são batatas fritas..." e deu-me mais alguns exemplos, ou seja, este menino não é caso único. E pergunto eu, "O que estão estes pais a fazer à saúde dos filhos? Será que não ouvem falar destas coisas?
Afinal, o fenómeno que relatas relativo à Inglaterra começa também já a aparecer em Portugal, infelizmente. De facto, esta situação por que passei não me deixou indiferente, e por vários motivos. Primeiro, dá para imaginr o que está por trás e não se vê, ou seja, o que serão as restantes refeições nas casas destes meninos. Segundo, infelizmente deve haver muitos casos idênticos espalhados por aí.
Acho que até sei algumas das razões que levam a esta situação, mas isso, para mim, não é o mais importante neste momento. A pergunta que me tem atormentado é o que podemos fazer nas escolinhas para mudar o rumo que isto está a levar, e estou a pensar especificamente na escola dos meus filhos. O que me dá realmente vontade é dar a ideia de fazer sessões de esclarecimento aos pais sobre práticas saudáveis de alimentação, mas temo muito a aceitação que poderão ter. Por agora, o que digo é que não vou desistir desta ideia e tentar que esta minha preocupação não morra aqui. Ando só a tomar coragem e a arrnanjar uma forma de pôr a questão na escola de modo a não parecer moralista... Sim, porque dá de facto vontade de ser moralista, mas tenho a certeza de que esse seria o caminho de menor sucesso...
PS: ainda li pouco deste teu blog (comecei por conhecer o outro das conversas...), mas gosto do que escreves e de como escreves, com Alma...

papu disse...

Olá Kate. Muito obrigada pelo teu comentário. De facto, o grande problema, e também quanto a mim, passa-se dentro de casa. Porque aqui é a mesma coisa, não sei se me expliquei bem: a maioria dos miúdos não tem uma alimentação adequada em casa. E aqui temos de dizer que é a maioria britânica. Os imigrantes trazem os hábitos alimentares com eles.

Não quero dizer que não possa haver, e há com certeza, excepções. Mas o que vemos nas escolas é isto: os almoços das crianças são à base de junk food. Os que levam de casa, e, até há pouco tempo, os que a escola oferecia também.

Porque o que acontece aí em Portugal é que, de facto, muitos pais dão uma alimentação errada às crianças, em casa. Mas nas escolas, na grande maioria das escolas (e atenção que estou a falar de escolas primárias) eles têm um almoço decente, composto por sopa e segundo prato, feito na sua maioria com ingredientes frescos. Isto não quer dizer que não comam douradinhos e produtos enlatados, como é óbvio.

Aqui passava-se o contrário: a própria escola oferecia (e em muitos casos ainda oferece) comida feita à base de produtos prejudiciais à saúde. Não havia regulamentação alimentar escolar! Ou se havia, os critérios não estavam definidos. E isto era assim há dois anos atrás, num país que tem uma das legislações que mais protege a infância, num país que é uma das maiores potências mundiais, num pais em que a preocupação com o bem estar das crianças é matéria exaustiva e fundamental.