sábado, outubro 21, 2006

BRIGAS E PONTAPÉS

Mas faltou contar uma parte da conversa com a professora. A dada altura alertou-me para o facto de poder haver na sala alguns rapazes capazes de ser uma "má influência" para o David. Durante uns segundos, ao ouvir estas palavras, a minha cabeça fez de imediato as já tão velhas associações, que se ouvem amiúde a torto e a direito e que me remeteram de imediato para certos periodos da minha adolescência: má infulência - más companhias - maus comportamentos - drogas - ...

Mas que diabo está ela a querer dizer? Estas preocupações aqui começam nesta idade? Que raio de má influência é que pode ter um miúdo de 7 ou 8 anos para outro da mesma idade? Mas depois percebi tudo. As más influências, neste caso, são em questões de comportamento dentro da escola, sim: comportamentos agressivos. A saber: murros, pontapés, cabeçadas, olhos negros. Numa palavra: lutas.

Mas agora vocês ficam a imaginar um cenário de violência e terror... cenas de faca e alguidar... nada disso! Apenas aquelas cenas de pancada normais nestas idades, digo eu. Normais? Se querem que vos diga já nem sei. Estou com dúvidas. Ou então bati com a cabeça. Foi por isso que resolvi escrever sobre isto.

Vamos lá a ver: todos temos recordações de cenas de pancadaria da nossa infância. Ou não? E nisto mais os rapazes que as raparigas, penso. Digo penso, porque de certeza que haverá algumas mulheres que dirão: "Eu era terrível, andava sempre à porrada!" E homens haverá que apenas referirão que não gostavam nada de brigas e que as evitavam a todo o custo.

O David é assim. Sempre foi. Quando entrou para o infantário, aos 15 meses, passado pouco tempo começou a falar sem parar de um Nuno que lhe batia. Chegou quase a ser um drama, porque chorava e dizia que não queria ir à escola, por causa disso. Depois nas outras escolas que frequentou havia sempre um outro menino que batia. Ele nunca foi de bater. E sempre sofreu com isso. Ainda sofre. Às vezes passa-se e diz que os amigos são maus, que não gosta deles, que está zangado, que quer mudar de escola... Mas outras vezes vejo-o a brincar com eles no parque, a rir, vejo-os abraçarem-se, vejo-o pedir para convidar os amigos cá para casa, e diz-me que o Thomas é o seu melhor amigo. O Thomas é o tal menino que às vezes bate nos outros, e no David também. Mas é o melhor amigo dele, diz ele.

Para o Diogo, por exemplo, já é mais fácil levantar a mão. Mas na escola não a levanta muito facilmente. Na escola, tenho a sensaão de que é como o irmão. Em casa é que gosta de distribuir porrada. Pelo irmão e pelo pai. Mas o David em casa também é diferente, é mais desinibido e já se envolve em lutas com o irmão. Apesar de às vezes ficar com os cabelos em pé, tenho que dizer que ele é extremamente cuidadoso com o Diogo. Muito mais do que o Diogo é com ele. E quanto a bater no pai... bem, parece-me que faz mesmo parte do crescimento dos rapazes andar à luta com o pai. Isto digo eu, claro, que não levo ;)

Eu também nunca gostei de lutas, em pequenina. Mas lembro-me de algumas vezes em que me briguei com algum primo, e com o meu irmão nem se fala. As lutas, mais ou menos agressivas, fazem parte da infância de todas as crianças, penso eu. Claro que há miúdos mais agressivos do que outros, e outros doentiamanete agressivos. Mas também os há doentiamente passivos. A agressividade também faz parte de nós. Aliás, é um motor importante da nossa vivacidade. Não me parece que cumpra o seu papel se for constantemente curto-circuitada pela passagem ao acto. Mas há uma idade em que, obviamente, é por aí que ela se exprime. Quando ainda não existem outras estruturas capazes de a sublimar.

Neste país existem muitos problemas de violência e agressividade nas escolas. Claro que estou a falar de escolas secundárias. Mas não sei até que ponto serão estes problemas mais graves e mais frequentes do que nos outros países europeus. Para ser franca, desconheço. Se me fizer esta pergunta assim de repente, sou tentada a dizer que aqui é pior do que aí, em Portugal. Mas se pensar duas vezes já não tenho tanta certeza. A violência nas escolas é uma realidade que há muito se faz sentir em Portugal, e que ultimamente tem sido alvo de uma grande intervenção e preocupação por parte de muitos grupos profissionais ligados à sua prevenção (estou a falar de profissões ligadas à saúde e intervenção social, como é evidente).

De certa forma é uma realidade intemporal, se pensarmos bem. Se recuar até à minha infância, recordo-me de milhares de cenas, milhares de momentos em que tive medo, porque alguém mais velho me assustava, ou me maltratava, ou me humilhava. Não é preciso haver violência física para que certos comportamentos para connosco nos deixem marcas para o resto da vida. Toda a gente sabe que há sempre aqueles miúdos e miúdas mais fracos, mais passivos, mais medrosos, e que são o alvo predilecto da chacota e da agressividade de outros miúdos e miúdas mais velhos, mais fortes, mais activos. E toda a gente se lembra disso e guarda imagens de alguma faceta desta realidade na sua memória. E de como isso pode ser assustador, e nos pode tornar os dias num inferno, numa certa altura da nossa vida.

Ora neste país há um combate cerrado a este tipo de comportamento, nas escolas. Eles até têm uma palavra específica para ele - bully - que pode ser usado como um verbo ( to bully - atemorizar alguém mais fraco) ou um nome (o atributo daquele que exerce o bully). E é dentro desta atitude de combate ao bully que eu entendo estas palavras da professora. Por um lado até concordo e defendo esta atitude, se a considerar uma tentativa de educação colectiva, de sensibilização para a dor dos mais fracos, de respeito para com os outros, se ela representar o embrião de atitudes destinadas a desenvolver sentimentos como a solidariedade e a empatia. Acho muito bem que comecem a ser cultivados na infância, é aí que temos o terreno fértil para eles, sem dúvida. O que eu questiono é os meios. Não sei, faz-me um bocado de confusão a ideia de que a infãncia se possa desenrolar numa perfeita ausência de agressividade, de brigas, de murros, de pontapés, de cabeçadas, de arranhões e puxões de cabelo. É quase como querer que um miúdo cresça sem ouvir um grito ou apanhar uma palmada dos pais. E lá volta a questão da agressão física, da palmada, que aqui também é prática ilegal. Mas que raio, pergunto eu, será que isto é de facto apenas uma questão cultural? Será que somos nós, os povos do sul, mais temperamentais, mais bárbaros, mais selvagens, sempre prontos a usar os punhos em vez da cabeça? É pá, não consigo dizer isto sem achar a hipótese completamente ridícula, mas às vezes estas questões deixam-me mesmo intrigada.

Eu acho que deve haver uma atitude firme de oposição e contenção das brigas e da agressividade, não me interpretem mal. Não vamos deixar as criancinhas esfolarem-se e arrancarem os olhos umas às outras! Claro que temos de estar lá presentes e parar a luta, se for preciso agarrá-los e afastá-los. E dizer vezes sem conta que não é à pancada que se resolvem as coisas. E mostrar-lhes que as palavras são armas muito mais eficazes que os punhos. Esse é o nosso papel. E o deles é ouvirem-nos, e na próxima questiúncula atirarem-se outra vez uns aos outros aos rebolões e pontapés. E daí a um bocado fazerem as pazes e serem os melhores amigos outra vez. Isto para mim é normal. E não, não sou pela violência, detesto violência, sou pela paz, mas acima de tudo, acho que temos de entender a natureza humana. É isso que acho que falta a muita gente. Entender a natureza das crianças. As crianças não são adultos em miniatura. Nós não podemos ter expectativas adultas em relação ao comportamento delas. E quando eles se comportam como se fossem adultos (o que é desadequado) para nos agradar estão a sacrificar uma parte muito importante da sua infãncia. Que lhes pertence por direito e que nós não podemos estragar. Isto sim, devia ser ilegal.

9 comentários:

Alex disse...

Tudo a seu tempo não é minha amiga?

Em matéria de brigas ... era a minha actividade preferida no recreio, mas com rapazes :-) e com as raparigas "más" da fita.


A música é linda Papu!

Este teu texto faz-me lembrar que um dia disse ísso mesmo à minha filha: quando ele te der um pontapé das-lhe tambem, mas dás com força porque as tuas botas são mais rijas que as dele, e expliquei-lhe aonde, em que sitio da perna, vais ver que ele nunca mais te bate.



E nunca mais lhe bateu.
Hoje corre atrás dela para lhe dar beijinhos (na boca, porque diz que é a namorada dele).


Peço desculpa pelo mau exemplo.

Beijocas
Boa semana

Kate disse...

Papu, achei interessante esta tua perspectiva sobre as brigas infantis. Na verdade nunca tinha pensado muito sobre o assunto, ou seja, sobre a importância que elas podem ter no desenvolvimento infantil. Depois de ler, sou levada a pensar que faz sentido. Na dose certa, é claro.

A dada altura, o teu texto fez-me lembrar uma situação que se passou comigo, com algumas semelhanças com o que conta a Alex sobre a filha. Tinha eu uns 13 anos e havia na minha turma um grupinho de alunos que me fazia a vida negra. Eu era um alvo fácil: introvertida, pequenina, etc. Como não era dada a brigas, a minha reacção nunca era na base da agressividade, até um dia... É claro que era frequente chegar a casa a lamentar-me das cenas, e o meu pai sempre a dizer-me para eu reagir. Um dia lá me enchi de coragem. Já não sei o que me fizeram nesse dia, o que sei é que dei a um dos tipos desse grupo um valente pontapé nas canelas. Sim bem valente, porque as botas eram de cabedal (usavam-se na altura umas bem rijas!) e o fulano até ficou com a perna esfolada. O tipo foi contar aos outros colegas do mesmo grupinho e puseram-se a gozar com ele, que não podia ser (do género, "ela não faz mal a uma mosca, como é que isso pode ser verdade"). O que é certo é que veio outro moer-me o juízo e levou a mesma dose. Remédio santo, nunca mais se meteram comigo. A partir daí passaram a tratar-me nas palminhas...

Alex disse...

Pois.
Ontém saí daqui a pensar nisto.
É obvio que a defesa pela palavra e pelo comportamento é a melhor defesa, mas quando nada resulta, quando se tornam num alvo aparentemente fácil, há que agir, há que ensinar (contra tudo o que vem nos livros) e o mundo como está hoje, a agressividade que se vive nas escolas, o aprender a defender, o aprender em resolver, em contornar situações que se devem manter à distância, tudo isto me leva a crer que as crianças não podem nem devem conhecer apenas as atitudes e comportamentos correctos, às vezes é preciso agir de outra forma, e o importante é que elas tenham noção que aquilo que fizeram foi "mal feito" e "incorrecto" mas foi necessário.




Uma boa semana, choveu o fim de semana todo, trancados em casa e sem grande margem para manobras :(

Beijinhos

CLS disse...

Uma vez, no 6º ou 7º ano, mandei um soco bem puxado atrás a um colega meu que andava sempre por trás de mim a assustar-me, serviu-lhe de emenda :).
Tb acho q os miúdos precisam de viver as coisas para perceberem a diferença entre o q está certo e errado e daí fazerem as suas opções, não ser só com base nas teorias q lhes transmitimos.
Bjs

Unknown disse...

Não sou o melhor exemplo, fartei-me de andar à tareia, ficava com o coração apertadinho, fechava os olhos e dava até não poder mais, nunca fui de iniciar brigas e era mais do tipo defender os oprimidos, fiz uma data de amizades e ganhei o respeito de todos os miúdos, eh,eh.

Fui chamada à Directora da escola (primária), uma data de vezes, e ainda no ciclo tb aconteceu uma vez, ai,ai,ai.

beijos, e xis, muitos

Dois Rebentos (de Soja) disse...

E como os miúdos já com essa idade podem ser mauzinhos uns para os outros...infelizmente é mesmo verdade! :S

Bjs

papu disse...

Pois está claro! É o que eu digo sempre ao David: se te baterem, bate-lhes também! Desconfio que se a professora soubesse tinha uma coisa, ia pensar, o filho é tão bem comportadinho, mas a mãe é um mau exemplo, ou algo do género! :D

Beijinhos para todas. Bem vinda Julinha :)

Alex disse...

Pois ... olha ... aproveitámos a tua ausência e pusemono-nos aqui na converseta.

Temos que nos mudar para a sala do lado!!!

Anónimo disse...

Brigas e pontapés faz-me lembrar uma estória que ouvi a minha mãe contar mtas vezes a propósito dessas "lutas" de crianças com potapés nas "canelas" e as consequentes nódoas negras. Ei-la: dois miúdos brigam-se e vão queixar-se aos respectivos pais. Essa briga sim, é violenta e a consequência é a morte dos dois. Enquanto decorriam os preparativos para o funeral dos adultos, pais das crianças, estavam os meninos cá fora a brincar...