terça-feira, abril 17, 2007

Alma brasileira

Às vezes as palavras são um espelho onde nos reconhecemos com estranheza. Como se passássemos por nós próprios na rua. De sobrolho franzido, nasce-nos um ponto de interrogação nas rugas da testa: como é possível alguém escrever assim desta forma o meu pensamento, se eu mesmo ainda não tomara conhecimento dele antes?

(Ou então sermos apresentados a nós mesmos por um ilustre desconhecido. Está bom? Bem, obrigado, e os meninos? Olhe, este é fulano de tal, você conhece?, e o nosso olhar, a medo, a derramar-se curioso e incrédulo na nossa imagem no espelho).

(Outro dia fui a uma feira com os meus filhos e lá no meio de um labirinto de diversão - não me ocorre outro nome para chamá-lo - encontrámos uns espelhos convexos, daqueles de feira popular, que nos reflectem cheios de carnes e curvas a mais e cabeças ora longas ora achatadas, e que reproduzem monstros de nós tão risíveis e imprevisíveis que nos fazem ir às lágrimas no riso (bem, pelo menos enquanto crianças, quando adultos já misturamos um pouco da ansiedade antecipada da metamorfose inevitável do envelhecer ao riso, pareceu-me), os espelhos, como lhe chamávamos nesse outro tempo que era o tempo do riso e da feira popular - assim apenas, espelhos, como se os que tivéssemos pendurados na casa de banho, por cima do lavatório, e na porta de dentro do roupeiro subitamente deixassem de merecer esse nome, pela inalcançável assimetria de proporções caricatas com que nunca nos adornarão quando nos reflectem os dentes amarelos e o sorriso cansado e matinal.)

Tenho dentro de mim uma alma brasileira que se revela a espaços nas ondas desse mar agitado pelo vento que é um pensamento sem raiz nem tronco - um pensamento que, ao contrário do outro, mais estruturado, que é árvore antiga e de sombra, é brisa marinha e irreflectida - brisa que leva consigo folhas e sementes dos nossos restos quando se transforma em vendaval, e que agita as asas dos pássaros e as velas dos barcos no alto mar, acompanhando o olhar até à exaustão pelo mundo das cores com que vamos pintando de palavras sem sentido o ar à nossa volta, com o ritmo e o bafo da respiração por compasso. Não sei se foi por ver telenovelas a mais no passado, se por ter habitado o país da selva Amazónica noutra encarnação, o que é certo é que muitas vezes penso em brasileiro. Assim como me acontece, ultimamente, amiúde, pensar em inglês, mas este facto será decerto devido a um acidente de localização, de proximidade física e temporária com a língua.

A língua inglesa cerca-me por todos os ouvidos e eu, calada, cada vez mais penso em português para dentro. Dentro de mim faço um diálogo de sombras e encantos que se reflectem como cristais de vidro na luz cega do sol da manhã. O sol da manhã sempre me soube a laranjas azedas e ácidas. Às vezes dou por mim a pensar em inglês e toda a minha alma profunda se retrai num constrangimento estrangeiro. Quando a fúria se apodera de mim escrevo, escrevo, e estas palavras são a tentativa da minha incredulidade em manter a solidez da minha língua, do meu pensamento, como se fazê-lo numa outra língua o enfraquecesse. Típico complexo de imigrante desenraizado que precisa de sentir intacta aquela que julga a única raiz do que mais não é do que a sua insegurança e a sua estranheza eternas enquanto se sentir estrangeiro (mas qual a distância entre senti-lo e sê-lo de facto?)

Quando me acontecia pensar em inglês, antes de vir para cá, pensava sempre em porteiros de hotéis com luvas brancas e manhãs com nuvens de chumbo deslavado. Ovos e bacon ao pequeno almoço. Ruas transversas e paralelas em recta profusão de sinais de trânsito e tráfego encaminhado em sentido inverso (que para cúmulo já é o verso, para mim). Casas e ares arejados, muito verde, grandes jardins, altas árvores com passarinhos cantantes e transbordantes, e cores súbitas em flores alinhadas e descoradas. Mas não, estes não são os ingleses da realidade. Da minha realidade, aquela que me cerca e me entra pelos ouvidos. Estes ingleses vivem em casinhas de bonecas, com portas frágeis e janelas dificilmente abertas. Quando entram em casa, metade da alma fica-lhes à porta. A natureza é selvagem e contida, numa contenção selvagem ou numa selvejaria contida, ainda não entendi. As ruas pululam de lixo e de gente. Quase que se faz uma regra de três simples a cada caixote do lixo (ou à falta dele): se quatro pessoas produzem esse chiqueiro debaixo do banco do parque, xis pessoas produzirão... etecetera. Quando aparece no céu, o sol beija com generosidade o mundo de casinhas minúsculas e ruas estreitas, e quase se encontra um sentido em cada esquina, um sentido cósmico, bíblico para os crentes. Quando chove a água apenas enlameia os passeios e enche os charcos. As ruas são rectas que se cruzam e entrecruzam naquele ponto misterioso e indeterminável em que duas rectas se podem cruzar (e que é o infinto - e que existe, garanto-vos, no ilusionismo que esta geometria gera na inesperada curva que se projecta branca e assimétrica numa linha recta, exactamente como nos tais espelhos, os que não precisam do adjectivo convexo, e que fazem com o nosso corpo pleno do vigor da juventude, do alto da sua idade certa e erecta, o impossível - dizemos nós - ao arredondá-lo em dúvidas e inchá-lo em balões de ar ingénuos e grotescos no espanto da espiral do tempo).

Enfim, a língua portuguesa é multi-racial, e é a minha, por isso dá-me a liberdade de pensar e falar numa ampla gama de idiomas. Lembro-me das aulas de português do meu décimo ano: eu entendia pior o português dos Açores que o português do Brasil (ainda hoje assim é). A língua é coisa viva, e vive em cada um de nós, e recria-se constantemente, na fala e no pensamento. Não é assim? O meu pensamento em brasileiro diz que sim.

Comecei a ler Clarice Lispector. E o meu espanto foi demais evidente: mas como é que eu ainda nunca tinha lido nada dela? Como é que pode? Estou assim a modos que extasiada com a leitura. Extasiada e tonta. Assim como debaixo de uma moca daquelas valentes. Pronto, está explicado, o devaneio.

2 comentários:

Anónimo disse...

quem e' que te deu a conhecer a dita senhora? eH! eh! pois e'...Afinal 'as vezes vale a pena dar um tiro no escuro... quer dizer nao foi bem no escuro...

nana disse...

também gosto muito da escrita da Clarice!