terça-feira, abril 10, 2007

Momentos

Caminhava arrastando o peso da solidão. Conhecia de cor os percursos sinuosos da dor, do medo que cegava, da humilhação que lhe corroía os alicerces da alma como um cancro. Na verdade, nunca se dera. Nunca recebera nada. Nunca fora olhada, desejada, beijada, nunca fora amada, nunca fora de ninguém. Nem por si mesma, nem de si mesma. Era o seu pior juiz, o mais criterioso, mesquinho, cruel, demente. E o seu carrasco, aquele que empunha a ceifa da morte no último confronto com a verdade...

A verdade... Que valor tão falso. Ela era mentira. Tudo mentira. Inventava tudo, pensava em tudo. Tudo. As conversas mais banais eram estudadas, escritas mentalmente, debitadas como matéria de exame decorada à pressa na véspera. Uma obsessão tremenda. Os gestos, os sorrisos, tudo ensaiado e memorizado e representado até ao fim. Até ao seu último acto.
Desconhecia por completo as gargalhadas que se trocam a dois, ou a três, os piscares de olhos, as cumplicidades, as palavras que se desenham como pontes entre duas almas. Quando duas almas se encontram, elas envolvem-se e sintonizam-se em harmonia. Estendem os braços, misturam as auras, trocam emoções e líquidos vitais. As conversas, as risadas, os olhares, são apenas meios utilizados para o objectivo maior, que é a comunhão empática.

Mas quem não tem alma? Quem a esqueceu no poço escuro da anulação mais terrível? Como falar, sorrir, ser, se tudo isso é vocabulário estrangeiro? Como sobreviver? Nem sobrevivia, antes morria todos os dias. E, para que ninguém testemunhasse o seu fardo, fingia que tinha alma. Dava o que não tinha. Inventava uma vida. Inventava emoções, alegrias, gargalhadas, anedotas de si mesma. Só a dor não precisava de inventar. Nem o medo. Nem a raiva.
O pior cego é aquele que não consegue enxergar-se, e se procura eternamente no rosto dos outros. Quem nunca teve um espelho onde pudesse reconhecer-se. É uma procura vã. Porque o rosto dos outros só espelha o que lhe oferecemos. Se o que damos é nada, não teremos senão nada.

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