quarta-feira, outubro 03, 2007

Naturezas

Há quem seja fecundador por natureza. Aqueles a quem ouvimos, ou lemos, tanto faz, e nos semeiam esplendores de rosas e buganvílias em incêndios pelas paredes brancas, cuidadosamente caiadas, da consciência. Ou pelos labirintos sinuosos e esquecidos da memória. As suas palavras têm o poder de despertar emoções a quem as lê ou ouve - e então dá-se o tal milagre, o da fecundação, neste caso, não do óvulo e do espermatozóide, mas o das ideias e das emoções, que se encontram, se misturam, se entrelaçam, e dão assim origem a uma nova ideia, uma emoção distinta, mas indistintamente ligada e ancorada às que lhe deram origem.

Evidentemente, este comércio de palavras, este tráfico desmesurado de sentires e pensares não é bem visto por toda a gente. Muitos se assustam com esta espantosa promiscuidade, e acham, de dentro das suas clausuras intelectuais, que as palavras, por nos saírem da boca ou das mãos, são, elas também, partes do nosso corpo, e, desta forma, sujeitas a todas as regras cívicas que a nossa sociedade atribui à propriedade privada. São aqueles que, de olho sempre atento e dedo em riste, se apressam a gritar, indignados: "mas esta ideia é minha! Estas são as minhas palavras! Olha o que lhes fizeste... estão horríveis!"

E não vale a pena argumentar que não, que embora se pareçam com elas, não são as mesmas, mas outras, inventadas na germinação e na ruminação daquilo que sentimos ao ouvir esta ou aquela música que nos entrou no ouvido, que nos despertou a empatia, que nos alcançou a boca da alma numa sensação de continuidade e entendimento, e nos despertou um cristal puríssimo de comunhão nunca antes sentido. Aliás, muitos se assustam com estas divagações idiotas, demasiado líricas e futilmente sentimentais, dos possíveis relacionamentos amorosos entre as palavras. Deves ver telenovelas a mais, ou então passaste-te definitivamente para o outro lado!, exclamam, num tom sarcástico. E sacodem o pó dos ombros, com esmero e determinação, como se ele, o pó, representasse toda essa afectividade mundana que tão soberbamente desprezam.

Até porque, acham eles, o que é que pode mover alguém que se deslumbra tão facilmente?; com certeza inveja, pois claro, e cada vez erguem mais muros em redor daquilo que temem ver invadido, receosos que um bando de malfeitores sentimentais lhes entre pela casa dentro e lhes derrube os alicerces da identidade. São essas as mesmas pessoas que se interrogam, com espanto, porque nunca se cansam as crianças pequenas de brincar horas a fio com o mesmo brinquedo, ou de atirá-lo constantemente para longe e ficar à espera que alguém lho devolva, ou porque diabo os poetas, essa raça de gente esquisita, perdem tanto tempo a observar uma pedra, ou a ouvir o mar, ou a conversar com as estrelas.

Geralmente, são pessoas muito sérias, um pouco cinzentas, que riem pouco e sorriem muito. Ou melhor, riem muito pouco para dentro, e muito para fora. Mas não riem com a cara toda, riem apenas com os músculos da boca. Riem, principalmente, dos outros, e não com os outros. Até podem rir em grupo, mas geralmente as outras pessoas do grupo também apenas se estão a rir de outros. Apesar de tanta risota, não são mais alegres ou mais bem dispostos do que a maioria, pelo contrário. As suas casas são escuras, assim como as suas roupas, sempre impecavelmente engomadas, como o sorriso que apresentam, matinal, sólido e eficaz.

Quando alguém se ri com eles, ou tenta rir-se com eles, acham estranho. O que é que este atrasado mental quer?, pensam com os seus botões, olhando por cima do ombro, para se certificarem que não é engano, e que aquela cara simpática está mesmo aberta para eles. É claro que se alguém lhes apontar para outra pessoa, com o riso de troça escancarado na boca, rirão também, e apontarão o dedo também e rirão cada vez mais, com as lágrimas a saltarem dos olhos, e acharão o máximo, que pessoa tão interessante que encontrei hoje, uma pessoa que sabe rir, e hoje é tão raro encontrá-las...

Quando lhes calha cruzarem-se na rua, por acaso, com uma ideia sua, aí sim, perdem a compustura. Descalçam o sapato, e vociferam ameaças: "o que é que andas a fazer a estas horas na rua? Não te disse já que te quero em casa? Que não te quero com más companhias? Já p'ra casa!", enfim, fazem um escandalo. E andam sempre atentos às sombras nas esquinas e aos becos sem luz, olhando disfarçadamente, à cata de uma cara conhecida no meio da multidão. Quando a encontram, escondida no meio das vozes ou das páginas cheias de letras que diariamente lhes circulam pelas mãos, a voz empalidece e voltam a ser as crianças mimadas e birrentas que já foram, a cara a arder de fúria: "não pode ser, esta ideia é minha! Fui eu que a tive primeiro! São as minhas palavras, eu bem sabia, roubaram-mas! Como é que pode ser? Fui eu que as inventei, são minhas!"

Afinal de contas, temos muito pouca afinidade com o reino vegetal; quando nos convém lá nos servimos da metáfora da sementinha do pai que entra na barriga da mãe, para assim explicar às criancinhas a nossa prodigiosa capacidade de gestação numa linguagem ao mesmo tempo acessível e adequada ao seu imaginário. Pois devíamos aprender a lição, e entender que, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, temos mais em comum com as árvores do que seria suposto, mesmo sem raízes a saírem-nos dos pés e apenas com dois braços em vez de ramos. É que, se pensarmos bem, são elas que nos purificam o ar e nos tornam possível o milagre de existirmos, são elas que guardam, dentro do tronco, bem no centro do coração, o mistério dessa seiva que nos liga à terra e nos transporta pelo vento, quando chega a hora de ver voar a semente que nos fará nascer de novo. E agora imaginem um desses gigantes da sabedoria, de cabelos verdes e braços poderosos como barcos imensos, a insultar o exemplar mais próximo e evidentemente mais moço, as raízes torcendo-se de indignação debaixo da terra: "ei, tu aí! O que é que estás a fazer? Essa folha aí, sim essa mesmo, essa verdinha e tenrinha como alface, é minha! O que é que estás a fazer com ela na mão? É minha, ouviste bem? Estava aqui no meu ramo, era minha! Devolve-ma já, antes que te espete com uma braçada nas ventas!"

Não, as palavras não nos pertencem, muito menos uma língua inteira. Elas apenas semeiam em nós aquilo que de nós as acolheu no seu regaço, e como um ventre grávido, deu à luz (à palavra) outro sentido, o nosso sentido, sempre novo e inigualável. Mas depois, voam-nos das mãos e da boca, para fecundar outros mundos - porque, felizmente, há sempre muito mais mundos para além do nosso.

1 comentário:

Alex disse...

Só hoje consegui ler este teu texto com olhos de gente.
O teu talento não tem limite.

"Navegamos num mar de palavras mas não lhes pertencemos".