domingo, janeiro 20, 2008

As vacas

A gente até podia estar lá no cantinho mais recôndito do quintal, no meio das ervas e das laranjeiras, brincando com pedrinhas no chão, ou lá no alto do mirante entretidos a espiar as mulheres que iam urinar atrás das rochas enquanto lavavam a roupa no tanque, pois ali na muralha não havia retrete pública; a gente até podia estar embrenhada com as carochas e os bichinhos-de-conta que apanhávamos da terra e enfiávamos numa lata, para depois pormos a mão lá dentro e ficarmos a rir das cócegas que aquelas dezenas de conchinhas pretas faziam subindo pelo nosso braço, alguns quase até ao ombro; que a gente sempre ouvia o som do badalo. Era sempre mais ou menos à mesma hora, mas isso, naquele tempo, não existia: a regularidade das horas. A infância é a única morada em que o tempo não se rege pelo passar dos ponteiros do relógio. A infância e a velhice, talvez.

"As vacas! As vacas!" - era o nosso grito de triunfo ecoando pelo espaço, num súbito vendaval iluminado no meio da calmaria sonolenta da tarde. E lá vinhamos nós escada abaixo - se estivéssemos lá no cimo do mirante eram uns degraus de pedra enormes de dar medo, e depois uma corrida pelo caminho no meio do canteiro das couves e dos amores perfeitos, e mais umas tantas escadas, estas menos perigosas, e ainda atravessar a casa de uma ponta à outra, com a respiração aos saltos, para por fim abrir a porta da frente e sair para o sol já deitado, mas ainda quente, do fim da tarde. Aqui os badalos já se ouviam como sinos gigantescos atrelados aos pescoços enormes e suados dos animais. Deviam ser umas seis, sete vacas, conduzidas pelo pastor que gritava monossílabos indecifráveis cada vez que uma se afastava do seu caminho. Eram todas brancas malhadas de preto, mas havia uma de malhas meio castanhas, que era a nossa predilecta. Elas passavam, melancólicas, as narinas abertas e escuras a fumegar gases respiratórios, os olhinhos espreitando de lado, os corpos desengonçados e poderosos em movimento, os cornos sempre agudos e ameaçadores. Às vezes uma delas parava bem no meio da estrada, e, ganhando uma expressão compunginda e ao mesmo tempo resignada, abanava ligeiramente os quartos traseiros e defecava magnificamente no meio do alcatrão, numa torrente inacreditável que se desfazia no chão com um barulho seco. A gente ria a bandeiras despregadas. O cheiro da bosta misturava-se ao do suor e do pêlo áspero. Mas aquilo eram autênticos bocados de palha, meio secos, daí por algumas horas ficariam apenas alguns vestígios pisados pelos pneus dos carros e das motas que passavam tão de vez em quando, que a gente lhes podia adivinhar a vinda pelo barulho crescente do motor quase a quilómetros de distância. Havia uma delas que gostava de trotar, parecendo ensaiar passos de dança, e que se excitava com as nossas gargalhadas e o nosso entusiasmo. A gente assustava-se um pouco, mas estávamos protegidos pelo muro à nossa volta e pelo portão de ferro absolutamente fechado, e por isso o susto não deixava marca. Depois de passarem iam até ao bebedouro, uns cinquenta metros à frente, onde saciavam a sua sede interminável de bovinos. E era mesmo interminável, pois nós mal podíamos esperar pelo seu regresso às pastagens, e pelo prazer de as ver passar a tão poucos metros de nós, de ver o seu corpo de animal possante de tão perto, de quase sentir o gosto do seu bafo de ruminante. Às vezes não aguentávamos a espera e voltávamos para as brincadeiras no quintal, certos de as voltar a ver no dia seguinte, quando o som longínquo dos badalos lhes anunciassem os passos. Era, sem dúvida, a altura grande do dia: a da passagem das vacas, que nós nunca perdíamos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Com esta descrição fizeste-me regressar aos meus tempos de menina, meus e do meu irmão. O sítio da passagem dos ruminantes era outro; a rua das Freiras, aonde tb morámos. Uma rua estreita, as vacas a cruzarem-se com as pessoas, a escorregarem na calçada mas, o mesmo deslumbramento que tu tão bem descreves. O passeio era até à fonte do Espítito Santo para saciarem a sede de um dia de encurralamento na vacaria do médico que morava naquela rua. Um dia perante a dificuldade em abrir a janela da sacada e, na aflição de perder esse espectáculo, enfio a mão pela vidraça, parto-a e ainda tenho a cicatriz desse impulso, que felizmente não passou de um susto, próprio daquela idade, ao ver umas gotas de sangue a correr do pulso um tudo nada cortado...Beijinhos mãe

tilena disse...

Papucita
A Mina já me tinha falado n"as vacas".
Afinal não era exagero de mãe babada. A gaiata escreve mesmo bem...
Bem podes ir furar a greve dos argumentistas. Vi perfeitamente o filme passar à minha frente.
Parabéns Papu!