sexta-feira, agosto 08, 2008

O casal ventoso

Calhou passar lá, na viagem para o alentejo. Estranhei a encosta nua, as rochas escarpadas, as ervas amarelas e algumas árvores a tentarem, num esforço de equilíbrio, manter-se direitas nos declives quase verticais. Já não passava por aquela estrada há algum tempo. Não vou dizer há muito tempo, porque não foi assim há tanto tempo, embora para mim seja quase uma eternidade. Lembro-me de passar nessa estrada, precisamente há quase uma eternidade, no fim de longas viagens, dessas vezes vinda do alentejo, e ficar a olhar, com espanto, o assombro daquelas luzes que varriam a encosta. Era sempre ao fim do dia, já com a noite a engolir o céu com aquela escuridão que ainda não é negra (talvez seja mestiça), e o recorte das casas ainda se adivinhava, num jogo complicado de pedras de dominó empilhadas umas nas outras, prontas a cair ao menor toque. Àquela distância, não se via o desenho da degradação das paredes, nem se pressentiam as precaridades das estruturas, tão pouco se intuía a derrocada constante dos alicerces daquelas vidas e daquelas casas. Muito menos para o meu coração de criança, a quem os olhos ditavam outras paisagens. Eu olhava aquelas luzes e o que via era uma árvore de natal gigante, feita de casinhas de bonecas, miniaturas de vidas e de pessoas que me pareciam pertencer a outro mundo, mais mágico que o dos prédios tipo caixa de fósforos que era o meu. Aquelas casas empilhadas umas nas outras pareciam estar cheias de vida, e o jogo de sombras e luzes completavam o quadro, que era de puro fascínio. Fazia lembrar também um presépio gigante, só que um presépio urbano, a imagem de uma grande cidade, em vez da tradicional cena do menino jesus na manjedoura à espera dos reis magos. Enfim, isto era o que eu via em criança. Depois cresci e comecei a reparar na degradação das casas, no equilíbrio precário e insustentável das suas estruturas, no bafo de fumo e de esgotos, e em toda aquela teia complexa de vidas marginais e desestruturadas que se urdia em volta e dentro daquele bairro. Aquele bairro sempre foi, talvez, o podre maior que Lisboa tinha enquanto cidade que se quer limpa, europeia, emancipada, sem barracas e sem miséria. E hoje, de facto, já lá não está. No seu lugar vê-se aquela encosta nua que eu vi ontem quando lá passei, sem querer acreditar que ali, naquelas falésias, alguma vez se tenham erguido, ainda que a custo, casas, e que pessoas lá tenham morado. No sopé das encostas, estão uns mamarrachos de cimento, com cores esbatidas, penso que neles se abriguem hoje as mesmas pessoas que moravam naquelas casas que tanto me encantavam as viagens da infância. Ou outras, não sei. Lisboa já não tem de que se envergonhar. Será? Restam-me dúvidas. As casas já lá não estão, a desafiar a lei da gravidade com descaramento e devoção, mas a precaridade, a degradação, a miséria, a marginalidade de tantas vidas não se derrubam com as paredes.

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