sábado, setembro 20, 2008

Cruzando os rios

O meu filho fez 9 anos este ano. Eu, aos 9 anos, ouvi o Sérgio Godinho pela primeira vez e foi paixão à primeira vista. Ou deveria dizer à primeira audição? À primeira escuta? Escutar não é, em definitivo, o mesmo que ouvir. Primeiro ouvir soa melhor, talvez.
Foi, então, paixão ao primeiro ouvido. Sonhava cantar como ele, ou com ele, já não sei bem. Sonhava talvez brilhar, com esse brilho raro que só vislumbramos naqueles que vibram quando se entregam. E eu vibrava ao ouvi-lo. Sabia de cor todas as músicas deste album, os sobreviventes. Enquanto ouvia as músicas, ficava a segurar nas mãos a caixa da cassete, com a fotografia dele naquele bocadinho de papel que se encaixava dentro da caixa de plástico e que já estava cheio de rugas; ficava a olhar para a cara dele, os traços do rosto perdidos nas sombras da fotografia, sem conseguir acreditar que ele também era de carne e osso. Nessa altura, aos 9 anos, o mundo é muito vasto, e nós ficamos assim meio encolhidos na nossa redoma, aquele cantinho solitário, de onde espreitamos, a medo, essa imensa vastidão que já nos fascina, apesar do medo. O medo, esse, acompanhar-nos-à sempre, apesar de naquela altura ainda não o sabermos, e invejarmos os adultos por pensarmos que os grandes não sofrem desse pavor que a nós nos assalta a cada passo desprevenido que damos. Depois vem o dia em que abrimos as janelas desse recanto triste e sombrio, e arrombamos as portas todas que se nos colocam à frente - e somos invencíveis, até o medo passa a ser nosso aliado, na forma de coragem. Fuga para a frente, a maior parte das vezes - mas, então, também ainda não o sabemos.
Estamos ávidos de olhos, de mãos, de braços, de tudo. Estamos ávidos do mundo. Queremos partir o vidro da bola de cristal, aquela que era mágica, mas que de súbito já não é capaz de magia nenhuma. Queremos afogar-nos no mar, percorrer os rios de uma ponta à outra, embrenhar-nos nas florestas longínquas, e abraçar as multidões.
Depois de esbarrarmos em muitos muros, descobrimos, incrédulos, ingénuos, que só podemos abraçar quem nos deu os braços. E que, para dar os braços, é preciso arrancá-los primeiro do peito, aos gritos de dor, porque ninguém consegue desfazer-se de uma parte de si sem dor. E, olhando para trás, percebemos o rio de sofrimento de deixámos atrás de nós, um rasto interminável, desde o dia em que arrombámos as portas e saímos do casulo. É que o casulo, aquela toca onde nos abrigávamos, era também uma parte de nós. E desfizémo-nos dela sem a menor dor, antes com a alegria dos que se sentem finalmente libertos, depois de anos de cativeiro. Como foi possível? Sentirmo-nos presos dentro do próprio corpo? Talvez a alma tivesse crescido demais e já não suportasse aquele casaco apertado em que se tornara o corpo. Mas aquele era um nomento de dor, muita dor, que confundimos com libertação, revolta, revolução, enfim, ideias bonitas e sedutoras, apenas. Tão sedutoras que nem demos pelas lágrimas que engolimos, à pressa, convencidos de que, finalmente, estávamos vivos.
E agora, temos tanta coisa morta à nossa volta que nem sabemos por onde começar. É necessário enterrar o que morreu, e reacender o que sobreviveu. E o que sobreviveu connosco, esses anos todos, não é mais do que, afinal, a nossa solidão. Aquele cantinho, aquela morada secreta onde, no fundo, sempre nos acabamos por esconder, de nós e dos outros, porque há coisas que não podem ver a luz do dia. Coisas que, simplesmente, têm de permanecer nas trevas, como os vampiros.
Regressamos a ela, então, à nossa velha e fiel companheira, a solidão. Já não a tememos nem odiamos, porque aprendemos que não é ela que nos mata, e sim a ausência - essa vasta ausência de tudo aquilo que sonhámos, e que não fomos capazes de correr atrás. Enquanto embriagávamos os sentidos com a luz ofuscante dos olhos do mundo, esquecíamos que o principal, aquilo que faz florescer os sonhos, não está nos outros, mas em nós - bem dentro de nós, no escuro das raízes da terra.
Regressamos, então, aos pequenos gestos - aqueles gestos que ficaram, lentos, como o movimento dos ponteiros do relógio, que aos nossos olhos de criança estavam sempre parados. As meias dobradas como a minha mãe as dobrava, como a mãe dela as dobrava, talvez, e também como a mãe da mãe dela. Aqueles gestos solitários de velho marinheiro, que já conhece de cor os percursos marítimos e as falhas na madeira rugosa do leme, e que sempre se deixa encandear pela luz dos faróis, lá longe, aquela luz que lhe anuncia um perigo sedutor, ali, ao alcance da mão calejada pelo frio cortante dos ventos do mar do norte. À noite, na lonjura dos mares, não existem luzes, as luzes acenam dedos cheios de anéis de brilho raro na língua da terra. Dali avistam-se os mistérios e as vidas de milhões de pessoas - pessoas que, como nós, não são capazes de arrancar do peito os braços sem sentir dor. Mas que, mesmo assim, os arrancam, e os dão, porque sabem que a dor de ficar inteiro é muito maior. Só ama verdadeiramente quem não tem medo de partir-se aos bocados - um braço, uma perna, o coração, a alma, a vida - um corpo esquartejado e retalhado. O que fica inteiro é aquele pedaço de mundo onde sempre nos abrigamos, depois da tempestade - aquele cantinho solitário onde nos podemos reunir secretamente, lamber as feridas, chorar, rir, odiar, gritar ou emudecer. É lá que verdadeiramente somos livres. Porque não há liberdade maior do que aquela que vivemos nos sonhos. Porque viver um sonho é a mesma coisa que construir uma vida. E só se constrói uma vida - ou vidas - amando. Amando muito. Chorando e rindo. Gritando de dor. Arrancando os braços do peito, para poder abraçar quem nos dá os seus.

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