domingo, outubro 26, 2008

Chovia

Era domingo, e chovia.
Chovia como se a tarde chorasse uma tristeza daninha, miudinha. Menina.
A chuva alagava os passeios, e formava pequenos rios nas bermas das estradas. Pequenos rios que corriam, águas velozes, cantando em surdina.
Uma música cristalina como a água.
Era de tarde, e chovia.
Quase escurecia.
No céu, não havia lua nem estrelas, nem breu. Apenas o oceano imenso das nuvens que desciam, alagando e dissolvendo os contornos do mundo.
Uma torrente de água, de pequenas gotas de água, caindo e batendo no chão, nas folhas das árvores, nos telhados e nas paredes das casas, na chapa dos carros, nos tectos de zinco, nos caixotes do lixo, nas tábuas das cercas, nas grades dos portões, nas pedras dos muros, nos vidros das janelas, caindo numa multidão de sons, pequeninos sons, toc toc toc toc toc toc toc toc...
Chovia, chovia sem parar, como se o céu inteiro desabasse, como se o céu inteiro fosse mar, como se céu e mar se tivessem misturado, ou trocado, ou alternado.
- Parece o fim do mundo, diziam as pessoas, e benziam-se, apressadas, assustadas.
Chovia, talvez, como no princípio do mundo.
Quando as primeiras águas beijaram a terra, fecundando-a, e dando origem aos oceanos.
Chovia, e os meus pés molhados e frios, apertados dentro dos sapatos, soluçavam prantos que se dissolviam na incerteza dos passos.
Chovia, e a maré subia. Subia, enquanto o meu pranto descia.
A maré que, um dia, há-de levar o mar inteiro ao abismo dos céus.
O mar inteiro à vertigem negra dos teus olhos.
E, desse beijo, o que surgiria?

1 comentário:

Lelena Lucas disse...

Bela escrita. Gosto de passear por aqui.