domingo, janeiro 25, 2009

Coisas do outro mundo

Estou escondida dentro da minha toca, que é uma espécie de cápsula espacial, de redoma de vidro, de concha, o que lhe queiram chamar. O importante é que me mantém assim, protegida, oculta, invisível. Olho através do buraco que escavei para poder observar sem ser vista. E o que vejo, deixa-me triste e ao mesmo tempo feliz. Vejo-vos sorrindo uns para os outros, dando as mãos, afagando cabelos, beijando-se, abraçando-se. Tento imitar-vos os gestos, e adivinhar o que se sentirá quando se é abraçado ou beijado. Vejo um cortejo fúnebre, os olhos escondidos atrás de lentes escuras para poderem chorar à vontade. Oiço os discursos. A dor. A perda. A amizade. Não me importava de ser eu a morta dentro do caixão, para poder ouvir palavras daquelas. Para ao menos saber que palavras daquelas são dirigidas a mim. Nunca tive amigos. Não tenho ninguém. Nem sequer sei o que é perder um amigo, quanto mais ganhá-lo. Vejo os gestos e os olhares dos sobreviventes no auge da dor. Uma carícia, um beijo, um toque de mãos, às vezes apenas o esboçar de um roçar de dedos, os olhos a fecharem, encharcados. Os meus olhos estão sempre secos. Como é possível que sejamos tão iguais e, ao mesmo tempo, completamente distantes? Acho que nem pertencemos à mesma espécie. Um dia, há muito tempo, tenho memória de um rosto, uns braços, um olhar de onde transbordava essa água que vejo escorrer-vos pelas faces - mas já foi há demasiado tempo. Não me lembro. Já nem me lembro de quando me escondi nesta pequena gruta, de como tranquei a porta e de onde enterrei a chave. Estou aqui há tanto tempo que acho que  nunca pertenci ao vosso mundo. Apenas o olho de longe, ao vosso mundo, enquanto vos observo, com aquela curiosidade pelo que é diferente e novo a morder-me a língua. E como vos invejo, meu Deus! Como queria para mim tudo isso que vejo - até as dores, as guerras, as mortes, não me importava de viver tudo isso, para ao menos poder saber o que é sentir na pele. A minha pele está tão seca e gretada que seria incapaz de qualquer sensibilidade. Afinal, o corpo dentro do caixão sou eu - só não tenho quem chore por mim, lá fora. Ninguém me vê - sou um alien dentro de uma cápsula espacial, um estrangeiro dentro do próprio corpo. E ficarei assim, escondida, esquecida, até ao fim dos tempos.

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