segunda-feira, janeiro 12, 2009

Eternidade

Em dezembro, os dias arrastam-se em rios de águas escuras que pairam, misturados com as nuvens, quase a tocar o chão. Os dias mal abrem os olhos e vem a noite e fecha-os; fecha-lhes os olhos cansados de longas pestanas. As casas aquecidas e iluminadas destacam-se, ilhas fechadas de luz no meio da imensa noite gelada. Os dias morrem cedo, em dezembro. A noite, essa, mantém-se eterna, alheada da luz que lhe vem coçar os pés, com aquela timidez translúcida.
E então, subitamente, o ano muda, e os dias, começam, muito lentamente, a espreguiçar-se. Esticam os braços com lassidão, como um animal sonolento que tivesse acabado de acordar da hibernação de um longo inverno. Estamos mergulhados no rio lodoso de águas escuras de dezembro, e, quase sem darmos conta, estamos em janeiro, mudou o ano e começamos a sentir a luz, preguiçosa, receosa; sempre tímida, a dar os passos, os primeiros. Quase que não se nota no princípio; mas, pouco a pouco, um dia, dois dias, e começamos a sentir a diferença. Os minutos. São apenas minutos, um, dois, talvez três, no primeiro dia. No segundo, mais uns tantos minutos. Os dias. Mais uns minutos de luz. Hoje são quatro e meia e ainda se vê aquela luz mortiça que antecede o crepúsculo, ao passo que há uma semana (há um dia?) já era noite. Amanhã haverá mais um ou dois minutos de luz. Minutos apenas, vagarosos, um, dois, todos os dias. Minutos que se escoam e que demoram uma eternidade. Uma eternidade todos os dias.
Lembrei-me de um velho moribundo. Está deitado à espera da morte com o susto entalado na garganta. Durante toda a vida acreditou que a velhice lhe traria a tranquilidade necessária para receber a morte. Enganou-se. Afinal, nunca estamos prontos. A angústia é uma garra afiada no seu pescoço. À sua frente, vê um rosto parecido com o seu, de enormes barbas brancas. É outro velho. Os velhos, como os pretos, os chineses e os recém-nascidos, parecem-se todos uns com os outros. Mas este não é um velho qualquer. É Deus. O velho nunca acreditou em Deus; aliás, em novo fez grandes discursos (não assim tão grandes, na verdade) sobre a sua crença veemente na não existência de Deus. A descrença em Deus pode assumir certezas dogmáticas e verdades absolutas, como qualquer religião. É, aliás, uma outra forma de religião. O velho sorri para Deus. Pensa que já morreu, e, afinal, não custou nada. Deus, porém, adianta-se-lhe: "Antes de morrer, tens direito a um último desejo, meu filho." Último desejo? O velho não sabe o que desejar. Ou melhor, saber até sabe; não sabe, porém, qual deles escolher. Despedir-se uma última vez dos entes queridos? Voltar a ter vinte anos? Trazer a mulher de volta do reino dos mortos, para a poder beijar uma última vez? Dar uma última queca? Pedir um par de asas para poder ao menos uma vez saber o que é voar como os pássaros?
O velho fecha os olhos e o sorriso vai-lhe morrendo, muito lentamente, nos lábios. Não. O que ele quer, o que ele mais queria, era poder ficar vivo só mais um bocadinho. Um minuto, dois, três? Alguns minutos bastariam. Apenas uns minutos de luz, lentos, vagarosos, eternos.

1 comentário:

Manuel da Mata disse...

É verdade:"em Dezembro os dias mal abrem os olhos".
Gostei deste texto.