sábado, março 07, 2009

Páginas em branco

Havia um homem que era viciado em datas. Todos as datas tinham um significado especial, que ele relembrava com nostalgia. Isto para além daquelas formalidades habituais, como os aniversários, os natais, os carnavais e outros que tais. O primeiro dia de escola. O dia em que a professora o pusera de castigo (o que lembrava melhor era o terror da humilhação). O dia em que não tivera nenhum erro num ditado. O dia em que reparara que a professora tinha os olhos verdes. O dia em que deixara a escola primária. O dia em que se apaixonara pela primeira vez. Fora um alívio, apaixonar-se por aquela miúda de pernas esguias e sardas na cara, que lhe deixava as veias em ebulição cada vez que o olhava. Lembrava-se, com um aperto no estômago, do dia em que achara que estava apaixonado pelo seu melhor amigo, um rapagão da mesma idade que ele, mas muito mais entroncado e desenvolvido. Era com um misto de terror e fascínio que aguardava o momento em que ambos se despiam no balneário da piscina, aquele momento em que espiava o corpo do amigo pelo canto do olho, com aquela angústia que não sabia bem se era volúpia quando olhava o pénis, muito maior que o seu (não seria muito maior, mas a ele parecia-lhe gigante comparado com o seu), e os pêlos que despontavam no baixo ventre. O dia do primeiro beijo. Depois havia uma série de primeiras vezes, que ele se escusava de enumerar com minúcia (pelo sentimento de vergonha e atrapalhação que geralmente acompanha as primeiras vezes), até àquela primeira vez em que se encontrara na cama, ao lado de uma mulher adormecida, os corpos nus de ambos envolvidos na carícia do lençol, e em que sentira que, finalmente, conseguira. O quê, não saberia dizer, ao certo. Mas que ela gemera mais que o habitual, e que ele entrevira nos seus olhos em fogo qualquer coisa mais (prazer? Paixão? Luxúria? Amor?), isso era certo. Havia depois uma série de datas em que se aperfeiçoara com esmero na técnica de fazer uma mulher gemer cada vez mais alto e por mais tempo. Isto até àquela em que conhecera a mulher tenebrosa que lhe invadira os dias de tormenta e angústia. Primeiro, o dia em que a conhecera, numa festa. Os olhos dela, negros, profundos como dois abismos, não lhe saíram da cabeça durante mais de uma semana. Voltaram a encontrar-se noutras festas, em casas de amigos comuns. Foram jantar fora e dançar a seguir, outro dia. A mulher atraía-o na mesma proporção que o assustava. Sonhava com ela, sonhos aterradores, em que acabava sufocado nos seus braços de serpente. No dia em que foram para a cama, não conseguiu. O primeiro dia em que o seu corpo falhava. Depois disso, o seu corpo continuou a falhar regularmente. E a sua ansiedade a aumentar consideravelmente. Também a sua cabeça começou a falhar. Por exemplo, há dias em que já não se lembra porque raio é aquela data importante. Já não consegue evocar o que aconteceu nesse dia. Ele sabe que aconteceu alguma coisa; teve de acontecer; só não se lembra o quê. Fica horas sentado, a olhar o vazio, a olhar as páginas de antigas agendas, completamente incapaz de decifrar aquela letra miudinha que era a dele. É isto que verdadeiramente o angustia: não saber que dia é hoje. Sem a memória das datas importantes, a sua vida deixa de ter sentido. Olhando as páginas de antigos diários, páginas cheias de letras indecifráveis (portanto, páginas em branco), ele vive no terror de não saber quem é.

1 comentário:

ecila disse...

Que texto bonito :) Uma vez conheci um homem assim, que tinha uma memória incrivel para todos os episodios marcantes da sua vida. Espantava-me ouvi-lo falar, no entanto penso que a vida o assombrava de alguma forma...