terça-feira, setembro 29, 2009

Furacão Elis

Não se iluda comigo: sou esse furacão que cê tá pensando, não. A maioria das vezes sou, até, demasiado tranquila pro meu gosto - menos que uma brisa sopradinha de verão, daquelas que nem conseguem agitar as nuvens mais inquietas da alma. Não, não sou esse avião - dou tão pouco nas vistas, que aposto que no meio de um monte de gente, numa festa, cê nem me topava. Que nada! Ou talvez sim, mas pelo canto do olho, lá sentada de parte, segurando um copo com dedos trêmulos, nervosa, fumando cigarro atrás de cigarro apenas pra manter as mãos ocupadas e os olhos embaçados pelo fumo da falsa confiança que uma aparência alheada sempre dá. Os homens nem ousam me pegar pra dançar. Veja só: não ousam - isto já é meu otimismo cagão falando mais alto. Na verdade, aposto que nem me olham duas vezes - a primeira chega pra se desinteressarem, mesmo sem darem conta - como nos desinteressamos de uma pequena marca de nascença, quase invisível, uma coloração ligeiramente mais escura, na beleza certa de um rosto que conhecemos. Eu sou esse pequeno defeito de nascença. Nasci com propensão pra quedas - de todo tipo, desde as acidentais, quando criança, primeiro da cama, depois da bicicleta nova e dos patins, até àquelas que vamos levando em passos sonâmbulos pela vida fora, talvez por inércia ou preguiça, talvez por medo, e que jogamos, sacudindo a culpa de cima dos ombros com o mesmo desdém com que sacudimos o pó, nos braços do destino. Sou uma dessas pessoas meio apagadas, silenciosas - como aquelas flores que se fecham na luz do sol, e que apenas ousam mostrar suas cores na palidez do luar. No meio de um bate-papo acalorado, prefiro me calar, não por ter falta do que falar, mas por falta de jeito pra falar, por me aperrearem todos os olhos do mundo fixos em mim, pelo surto de adrenalina que me sobe nas veias e me joga na beira do precipício cada vez que me sinto o centro das atenções. E lá, na beira do abismo, não resisto ao fascínio das vertigens, e perco o equilíbrio - me atiro. De cabeça. Sem pensar. Não, cara, não brilho porra nenhuma, sou desses satélites secundários, sem luz própria, girando sem parar em torno do planeta principal, uma tonteira, sem saber o sentido de minha órbita, uma das faces sempre oculta no mistério da escuridão do cosmos, a outra reflectindo apenas um brilho alheio a minha própria vontade. Meu brilho é ilusão de ótica de quem me ouve cantando. Só quando canto me transformo. A voz é meu reino, aquele pra onde subo, levada no vento, cada vez que a música me sai dos poros. Mas não confunda a força que a voz me empresta com a de um vulcão, não - na verdade, ela nem é minha. Quando canto, saio de mim, saio do meu corpo, até minha alma me perde o rastro - vou pra um lugar desconhecido, que não sei onde fica, bem longe daqui, desconfio que nem nesta galáxia, mas onde, eu sei, é minha morada.

(primeiro publicado em O Outro Lado da Lua)

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