sexta-feira, outubro 30, 2009

Outono

Os dias estão mais curtos, e a luz despede-se, rasteira. A luz no outono é feita de longos dedos que, num instante derradeiro, nos afagam o rosto em brilhos de cores quentes que já não queimam, apenas deixam um rasto de folhas esquecidas, amarelas, castanhas, a lembrar os dias longos e a combustão verde e fresca da clorofila. A luz do outono é uma eterna partida, a alma parada na pedra fria da estação, os pés gelados assentes no duro inverno, as mãos feitas de luz e de adeus em gestos de folhas secas ao sabor de um vento apenas húmido. De noite o frio mergulha-nos nos ossos e em sonhos viajamos para lugares improváveis, que rapidamente esquecemos ao acordar na luz de uma nova manhã cheia de promessas. E então levantamo-nos da cama num gesto igual ao de tantos dias e sacudimos o pó dos sonhos que ainda se nos agarra aos cabelos. Um gesto inútil, porém: para o resto do dia ficará aquela sensação de estarmos ainda mergulhados no sono, e todos os gestos rotineiros destinados a ligar-nos à terra representarão um esforço inglório. Apesar dos pratos e dos talheres na mesa, e das horas a chamar por nós, e das bocas dos miúdos em gargalhadas redondas e daquela comichão na boca do estômago como um aviso, um alarme, um despertador, continuamos a dormir, como se a noite ainda não nos tivesse abandonado o fundo da retina e nos pesasse nas pálpebras com uma indolência de séculos. Apesar da luz, lá fora, se despedir com um leve roçar de dedos e os gritos dos pássaros, lá muito ao fundo, nos espalharem ecos dentro das salas amplas e iluminadas do ouvido interno.

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