Se está em todo o lado, também deve estar dentro da minha cabeça e talvez me ouça os pensamentos. Se calhar é por isso que não fala comigo, para me castigar. Deve deitar-se comigo e com a mamã na mesma cama, e deve saber da vontade que tenho de me abraçar a ela, como quando era mais pequenino e o papá ainda não tinha morrido. O papá morreu num desastre. Depois disso, a mamã voltou a deixar-me dormir na cama deles. Nunca mais tinha deixado. Dizia que eu já era crescido, e que os meninos crescidos não dormem com os pais. Agora já não diz nada.
Talvez seja por isso que Deus nunca fala comigo. Talvez eu devesse dormir na minha cama. Mas tenho medo. Tenho medo de acordar de noite sozinho no meu quarto. Tenho medo do bafo gelado da escuridão.
Já não me lembro bem da cara do papá. Às vezes olho para as fotografias mas não é a mesma coisa. Eu queria falar com Deus para lhe pedir que lhe desse um recado. Um recado assim grande, uma espécie de carta. Até escrevi tudo numa folha para não me esquecer: Papá, sei que não podes voltar, mas podias pedir ao senhor Deus para te deixar voltar só mais uma vez. Isto porque o canário morreu porque nos esquecemos de lhe dar de comer. Tu é que compravas a comida para ele, e deves ter-te esquecido de dizer à mamã onde é a loja. Volta só mais uma vez para comprar outro canário. Depois já podes morrer.
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