terça-feira, março 02, 2010

O divã do psicanalista

Deito-me, e vem-me um sabor metálico à boca, um sabor intenso que tento disfarçar produzindo mais saliva, com movimentos lentos da língua. Engulo-a e molho os lábios secos. Faço isto tão automaticamente que nem dou por isso; só depois, quando penso nesse ínfimo momento de desconforto, o consigo relembrar. Não sei porque sinto desconforto, acho que é algo que aquele sabor traz na memória. Às vezes quando sonho acordo com a língua encharcada nele. Mas raramente consigo recordar os sonhos que me assombram as noites, diluem-se na luz da manhã, e fico apenas com os restos de algodão nos bolsos, um cheiro, um sabor (na boca amarga). No minuto a seguir, começo a ouvir-te os intestinos. Simulo um sorriso, sempre com receio de que me vislumbres o rosto neste ângulo improvável, deitada, com as pernas cruzadas e os saltos a descansarem em cima do tecido castanho-pardo (nada de cores escaldantes, li uma vez numa revista da especialidade, perdida lá por casa), enquanto tu, sentado, imagino, também de pernas cruzadas, no teu fato impecável e na gravata discreta. Saberás que te oiço as flatulências distraídas? Provavelmente não, se o soubesses com certeza não persistirias nesse silêncio pesado, denso, quase comovente, na sua plenitude e ao mesmo tempo fragilidade. Às vezes é quebrado pelos ruídos da cidade que se entranham pelas persianas quase fechadas e se espraiam na semi-obscuridade do quarto, algas agitadas e inquietas, mãos ávidas de um amante demasiado jovem. Os amantes querem-se maduros, como o vinho. Sobressalto-me. Afinal, estamos aqui os dois na penumbra de um quarto, numa intimidade que por vezes me parece obscena, eu a ouvir-te o labor incansável dos intestinos, num quadro tão patético quanto desconcertante. E, não sei porquê, sinto que aqueles peidos são, no entanto, mais pessoais que o sorriso deslavado e a mão sempre impecavelmente seca que me estendes à chegada. Nesta altura já estou a fungar, discretamente, para fora, a pensar no cheiro. Mas o mais estranho é que nunca chego a senti-lo, ao cheiro. Não sei se por causa do tal sabor a ferrugem que se torna mais intenso e que tento disfarçar já com algum desespero, molhando os lábios ansiosos, ou se por causa do silêncio que se abate cada vez mais pesado sobre o meu peito. Tenho de dizer qualquer coisa. Mas o quê? Tudo o que me passar pela cabeça?! Bem, neste momento a minha língua já devia estar cansada de tanto tagarelar, e ainda assim continua hirta, de encontro aos dentes, em movimentos imperceptíveis, a produzir a saliva milagrosa que para sempre há-de varrer este cheiro. Imagino sempre, nesta altura, os teus olhos a percorrerem-me as pernas, e a sensação é tão real que chego a sentir uma carícia morna a aquecer-me a pele gelada. Sim, a minha pele está sempre gelada. Às vezes chego a temer que fique branca, pela manhã, com a geada.

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