quinta-feira, junho 03, 2010

Os 101 dálmatas e o silêncio dos inocentes

Lembram-se dos 101 dálmatas? Lembram-se dos cães de todos os jardins a ganir à lua, passando a mensagem do paradeiro dos cachorrinhos? Pois bem, essa estória não se pode ter passado em Londres. Pelo menos, esta onde vivo.
Ora, estava eu ontem à noite na cozinha, quando sou surpreendida por um ladrar canino a rasgar o silêncio da noite. Parei imediatamente o que estava a fazer, e pus-me à escuta. Teria ouvido bem?
Da sala chegava-me o som da televisão, e de repente novo latido, mais forte que o anterior. Desta vez não tive dúvidas. Era mesmo um cão a ladrar!
E então?, estão vocês a pensar. O que é que um cão a ladrar tem assim de tão especial? Eu explico: sabem aqueles sons de fundo que não nos deixam usufruir do silêncio, que a gente às tantas confunde com o silêncio, e que só damos por eles quando de repente cessam, sem motivo? E os nossos ouvidos, já habituados àquele ruído branco e monótono, de súbito estranham, e ouvem... o silêncio?
Pois bem, o ladrar do cão teve mais ou menos o mesmo efeito nos meus ouvidos e no meu cérebro. É que, quando o ouvi, estranhei... um som tão familiar, era, súbita e inexplicavelmente, completamente estranho... e porquê? Porque, simplesmente, deixara de os ouvir. E ainda não me apercebera. Como o ouvido acostumado ao ruído, que confunde com o silêncio. Eu, foi mais ao contrário: confundi o silêncio com o ruído. O silêncio dos cães... ainda não tinha dado por ele, até àquele ladrar forte e inesperado.
É isso mesmo: os cães de Londres são inocentes silenciosos. Pura e simplesmente, não ladram. Mas como?, estão vocês agora a perguntarem-se. Good question. A mesma que fiz, incrédula, ao meu marido, quando vim até à sala confirmar que aquele ladrar só podia vir de um sítio... da televisão, e não da rua, como a princípio pensara! E fiz-lhe a mesma pergunta: já reparaste que os cães aqui não ladram? Mas como é que isso é possível? É proibido? E como é que se poíbe um cão de ladrar?
Ainda por cima, cães é o que não faltam: nunca vi tanto animal de estimação junto, nunca vi tanta gente a passear os seus amiguinhos pela trela. Há-os de todos os tamanhos e feitios, de todas as raças e marcas que possam imaginar. Só que não ladram. É verdade. Como é que isso é possível, não me perguntem.
Claro que um especialista em treino de animais com certeza que não achará espanto nenhum nesta minha questão. Para mim, contudo, permanece um mistério. Um cão a ladrar parece-me a mesma coisa que um coração a bater. E se há quem diga que "cão que ladra não morde", eu diria que cão que não ladra... não é cão não é nada.
Talvez não seja de todo agradável sermos acordados pelo ladrar destes amigos altas horas da noite, mas faz-me confusão aos nervos, o que é que querem? Desde ontem que não paro de pensar nisso. Nos cães sem voz. No silêncio destes inocentes.
Por isso é que vos digo que aquela cena dos 101 dálmatas não se pode ter passado aqui, nesta Londres, onde os canídeos são mudos. Ou foi pura imaginação, ou foi antes dos latidos serem proibidos nas ruas.


Ainda o silêncio dos inocentes
  
É raro, raríssimo, mas de vez em quando lá se fazem ouvir.
Deve ser do calor, não sei.
As criaturas também têm direito a passar-se com o calor, ou não?
E, de quando em quando, um ladrar súbito atordoa os ares.
E sempre que tal acontece, volta a dar-se o mesmo milagre nos meus ouvidos. Ou na minha cabeça, não sei bem. Talvez numa imprecisa região do cérebro, onde confluem afectos, sons e memórias.
Sempre que os oiço, volto a ouvir mais nitidamente o seu silêncio.
Ou melhor, só sinto verdadeiramente o seu silêncio quando os oiço.
Quando não os oiço, já sei que não ladram, mas saber que não ladram é completamente diferente de sentir falta do seu ladrar.
Essa só a sinto mesmo quando os oiço.
E é incrível o que o ladrar de um cão traz consigo.
O ladrar dos cães é tão antigo como a própria humanidade.
O ladrar dos cães faz parar o tempo. Transporta-nos para outras dimensões.
Tem o poder de nos levar para outros sítios, de nos restituir memórias intactas, que julgávamos perdidas.
O ladrar de um cão no silêncio da noite, por exemplo, é uma companhia. E quando a esse ladrar respondem outros ladrares, diferentes de intensidade e timbre, mais e menos distantes, então o nosso coração também ladra no peito.
Ladra de vontade de se reunir à matilha.
O ladrar dos cães anuncia proximidade de casas, pessoas, abrigos. Para um viajante solitário é como chegar a casa, para um marinheiro distante é como atracar no porto.
O ladrar de um cão transporta-me para a infância, para aquele pontinho minúsculo onde estou deitada na cama, sem conseguir adormecer devido ao bafo de fantasmas ancestrais, e de repente aquele som familiar corta a escuridão e entra na minha solidão. Devolve-me a realidade, a claridade da luz do dia, o sol a pino lá do alto a afagar as colinas da serra com o seu calor ancestral. E a minha alma pequenina aquece com ele. Fecho os olhos e quando os reabro a escuridão tem novas cores, já não me ameaça, e os velhos fantasmas sorriem para mim.
Juro-vos que é verdade.
O ladrar de um cão tem o poder de nos tirar de dentro do poço da angústia.
O ladrar de um cão é uma linguagem mágica. E essa linguagem é comum aos seres humanos.
O ladrar de um cão é um aviso, um chão, um tecto, um alerta, um sinal, um postigo, um abrigo.
O silêncio dos cães não tem cor nem coerência.
O silêncio dos cães é uma aberração da natureza.
O silêncio dos cães faz-nos sentir estrangeiros no mundo. Mais ainda do que já somos.
O silêncio dos cães encerra-nos as portas para a clarividência de outras almas.
O silêncio dos cães é pesado, é estranho, é complexado.
O silêncio dos cães instala-se nos ouvidos como um parasita, e afasta-nos de nós mesmos, da nossa natureza, da nossa certeza de segurança, da nossa primeira linguagem.
Não percebo, nunca vou perceber isto.
Nem quero.
Lembro-me do Rumble Fish, que vi há séculos, daquela cena em que os animais da loja são libertos, e correm em debandada para a rua.
Eu apetecia-me volatilizar-me em sopro de vento, e ir por aí, por esses quintais fora, a sussurrar aos ouvidos dos cachorros: "Ladrem! Ladrem! Ladrem!"


(republish)

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