terça-feira, agosto 24, 2010

Luz da vida

Os dias tinham passado, rápidos, furtivos, uns a seguir aos outros, sem lhe dar tempo para pensar, para sentir o que quer que fosse. Uma sensação de adormecimento tolhera-lhe os membros e a consciência, e ela fora, levada na corrente, sem se deter nas pequenas dentadas que as pedras afiadas do fundo lhe lançavam às canelas distraídas. Acontecera o mesmo na praia, quando negligenciara a camada de protector solar nas costas, por pua distracção e excesso de zelo com outras costas, as das crias, num indolente menosprezo por si mesma a que já se acostumara, e que sempre pagava caro: no fim do dia tinha a marca daquele sol inclemente, em brasa, dorida e vermelha, desenhada nas costas, e nem dera por nada, até procurara a sombra, mas o sol, sorrateiro, com pezinhos de lã e carícias mornas, entretivera-se a tatuar-lhe a pele, num trabalho laborioso e paciente, que não doía nem se fazia sentir, mas queimava. Só no fim do dia, em casa, longe do mar e do iodo, da areia e do calor, a dor súbita da pele escaldada a surpreenderia, debaixo do duche, acordada talvez pelo contacto morno da água, quase fria. Acontecera o mesmo com esses dias vertigionosos, que tinham passado à velocidade da luz, em que pessoas, rostos, vozes e gestos a tinham distraído daquela dor primordial que teimava em morder-lhe as entranhas; uma dor a que, de tão antiga, já se acostumara, por inércia, medo, cansaço. Agora, porém, começava a sentir os efeitos dessa queimadura, que a exposição demasiada ao sol causara. O mesmo sol que é a luz da vida, e que se pode tornar na sombra do inferno, sem darmos conta.

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