segunda-feira, setembro 06, 2010

Blind date

Senta-se em frenta ao espelho, a pintar os olhos. Nunca se maquilhava. Quando era jovem nutria um desprezo indolente por todas as raparigas da mesma idade que passavam horas ao espelho, tingindo a cara, e vestindo e despindo roupas umas atrás das outras, para ver qual ficava melhor. Ela suspirava, e pensava no pouco tempo que vestir um par de calças e uma camisola lhe roubava à manhã. Hoje, porém, já não tem 16, nem 20 anos. Também não se pode dizer que tenha envelhecido. A pele ainda está óptima, quem sabe se pela ausência de cosméticos, esses milagres empacotados que nos prometem pele eternamente lisa. Ri-se. Está a pintar as pálpebras com uma sombra arroxeada, que lhe fica bem com o escuro acobreado dos olhos. Passou um traço no interior das pestanas, na parte inferior, o que lhe dá um olhar carregado de mistério. Não se reconhece. Contudo, está a gostar da metamorfose. Pensa, com insistência, no poder que certas coisas têm sobre os aspectos mais banais da nossa existência, que se revelam assim tingidos de súbita importância. Sente-se como se fosse para um blind date. Esses encontros imediatos que resultam da rede cada vez mais extensa de contactos ditos sociais, e que as novas tecnologias suportam. Internet hoje é sinónimo de contacto, de sociabilidade, de visibilidade, quase de estrelato. Ela não liga para isso. Vai encontrar-se com alguém que não vê há muito. Que talvez nunca tenha chegado a conhecer. Como esses antigos apaixonados que encontra no Face Book, se quisesse quase que podia criar uma colecção. Ri-se de novo. Uma colecção de amores impossíveis, adiados. Platónicos, soa melhor. Terminou os olhos, agora detém-se nos lábios. Não gosta deles vermelhos, prefere-os de um tom mais sóbrio, um tinto a atirar para o castanho, cores de almas invernais e hibernadas. Instintivamente lembra-se de quando era criança e esborratou a boca com o baton da mãe. Nova gargalhada muda. E o que está à espera de encontrar? Não sabe. Ou antes, sabe: aquela pessoa sempre viveu a seu lado, apesar de muda e amordaçada. Alguém que nunca pôde ser visto. Reconhecido. Vai ser difícil olhar para o rosto dessa outra mulher, ver-lhe as cicatrizes, os olhos inchados pelas lágrimas, a boca murcha e sem graça, a pele baça e enrugada pelos anos. Sabe, porém, que vai sentir inveja das marcas de tanto sofrimento, porque ela, a outra, pôde desatar os nós do peito moribundo, sem medo de ferir ou matar alguém. A outra, apesar de feia, velha, gasta, nunca precisou de se esconder, de fingir, de sorrir sem vontade. Tanto que precisa de ouvi-la, de conhecê-la; tanto que precisa de saber. De ver. Não, não é um blind date, mas o seu oposto radical, um encontro onde, finalmente, vai poder ver. Tirar as vendas dos olhos e ver. Como se olhasse o espelho, a mesma imagem agora, à sua frente; uma mulher bonita, maquilhada, quase jovem; e o negativo, uma mulher de olhos inundados de lágrimas e a rebentar de tristeza. É esse o presente que vai receber hoje. A sua tristeza, genuína, intacta, viva. Termina a pintura, fecha o estojo da maquilhagem, dá um jeito ao cabelo e levanta-se, decidida. Veste o casaco e sai, ao encontro de si mesma.

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