Sim, talvez seja muito mais fácil acreditar que somos todos almas etéreas, a pairar acima das nuvens, indiferentes à dor e às vicissitudes mundanas. Que nada nos pode afectar, que nada nos pode tocar ou causar qualquer dano. Para nós não há bem nem mal, certo ou errado; pairamos acima de toda e qualquer moralidade, indiferentes, insensíveis à dor, ao pranto, ao sofrimento. Não precisamos preocupar-nos com nada, porque o nosso destino está escrito pela divina providência. Esta existência é, aliás, uma ilusão. O sofrimento uma lição que precisamos aprender, para alcançar o desenvolvimento espiritual a que a nossa alma se propôs, quando nos escolheu o caminho. Em tudo o que acontece no mundo existe uma perfeição divina; perfeição que está acima, como é evidente, das verdades terrenas. Não há bem nem mal; mesmo os crimes mais horrendos acontecem para bem do nosso crescimento espiritual. As vítimas não devem pois perdoar aos seus carrascos; antes agradecer-lhes, por lhes terem proporcionado tal experiência. A humanidade, aliás, precisa de se livrar deste arquétipo da vitimização, que nos prende ao passado e nos impede de crescer em direcção à luz.
(Pois eu prefiro as trevas, prefiro o inferno, as dores mais inimagináveis, a este rebanho de pobres diabos que foge da vida como o diabo da cruz. Ou não percebem que esse mundo cor de rosa onde tudo é perfeito é o retrato da morte? Prefiro ser humana, sentir na pele a dor de uma bofetada e a revolta de uma injustiça, a pairar nesse céu vazio onde só mora quem aspira à ausência de sofrimento pelo preço mais degradante que se possa imaginar. Eu sei que há muita crueldade no mundo, e injustiça, e dor, e no dia em que não tiver a lucidez de ver tudo isso perderei para sempre a minha humanidade, que é o que me liga à vida. A vida é só uma, meus idiotas, e eu não quero desperdiçá-la com promessas de vida eterna fundida com nenhum Deus soberano. O que vocês não toleram é a dor, é a fraqueza humana, a mesma fraqueza com que vimos ao mundo e nos torna dependentes. Desconhecem por completo que a nossa maior fraqueza é também a nossa maior riqueza, aquela que nos dá força e nos faz mover montanhas. Porque somos nós, humanos com alma, que movemos montanhas, e não Deuses distantes. Somos nós, pessoas com alma viva, que fazemos o mundo girar. Para almas mortas já nos basta aquelas que vemos morrer todos os dias, sem poder fazer nada para impedi-lo. E sim, há muita maldade no mundo, mas também há muita beleza. Ser capaz de a ver no meio da fealdade é o que nos salva, e não negar o horror. Se não víssemos o horror deixaríamos de ver a beleza de tudo isto.)
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