Sempre que sente a crise chegar, fecha os olhos e tenta não pensar em nada. Já sabe que é um esforço em vão: dentro da sua cabeça, começará o desfile de pensamentos macabros e sinistros. No entanto, rende-se, como um espetador que fosse parar a um desfile de moda por engano. Não que a comparação seja justa; uma pessoa nessas condições nunca sofreria os horrores da angústia que a assaltam nestes momentos. Começa no bater descompassado do coração, que parece querer saltar-lhe do peito para a boca; na sensação de irrealidade que a faz acreditar estar a viver dentro de um sonho; um pesadelo, será mais adequado dizer. E depois vem aquele aperto no peito, aquele pensamento sinistro, e o bafo da morte no pescoço, e aquela certeza aterradora de estar a viver os últimos minutos da sua vida. A primeira vez que lhe aconteceu era muito nova. Já não se recorda, devia ter entre dezoito e vinte anos. Não conseguiu dormir quase nada; cada batida do coração que ouvia, ampliada, dentro da cabeça, era um passo na direção da morte. Apetecia-lhe gritar e correr a enfiar-se na cama dos pais; porém, como é que alguém da sua idade, quase uma mulher (uma mulher, praticamente) poderia fazer isso? Talvez até o tivesse feito, se tivesse conseguido mexer um músculo. Mas não. O corpo não lhe obedecia. Nem a voz lhe saía da garganta. Talvez já estivesse morta, no fim de contas. Acabou por adormecer de exaustão, e no outro dia despertou com a luz do dia a entrar pelas frinchas do estore, surpreendida por se encontrar viva. Que disparate. A luz afugenta os fantasmas. Foi o que aconteceu. À noite, porém, tudo voltou. O mesmo filme de terror, noite após noite, até andar tão derreada que por fim já adormecia mal deitava a cabeça na almofada; ao menos assim nem dava por aquele monstro que lhe sondava os pés da cama.
Entretanto, habituou-se. Leu também muito sobre o assunto, mas já sabe que todo aquele manancial de técnicas que os livros de auto-ajuda aconselham não serve para nada. Não há racionalidade que suplante a angústia de morte. É, aliás, contraproducente: quanto mais tentamos afastar os pensamentos sinistros e substituí-los por outros, mais os primeiros se assanham e se arremessam contra nós. É como tentar conter uma erupção vulcânica ou um terramoto: nada a fazer. O melhor é cobrir a cabeça, encolher-se a um canto e esperar que passe.
Esperar que passe. É essa a sua técnica. Não pensar em nada, ou antes, entregar-se aos pensamentos sem lhes opôr resistência. Ninguém suporta o medo mais de cerca de trinta minutos. Passado o pico da ansiedade, esta tende a baixar. É nesta altura que volta a si, passa as mãos na cara, com os mesmos gestos com que a lava de manhã, abraça os ombros e esfrega as mãos nas pernas, por esta ordem, enquanto repete, como se rezasse: está tudo bem. Tem calma. Não vais morrer nada, que disparate. Vês, até já consegues rir da cena. Vá lá. Tem calma.
Nunca contou a ninguém, nem aos colegas, nem à médica de clínica geral, que foi sua colega na faculdade. Como é que ela, uma mulher da ciência, uma mulher que lida com a morte todos os dias, em horário de expediente, pode ter crises de angústia? Ela, que todos os dias salva vidas, vidas estendidas na mesa de operações, ao seu dispôr, à mercê das suas mãos; ela, que tantas vezes vê morrer essas mesmas vidas, vidas iguais à dela, que temem a morte como ela, provavelmente não tanto, ou talvez até mais, quem sabe, tudo é possível. Como é que ela, que tantas vezes dá o veredicto final, quando as tentativas desesperadas de reanimação não resultam; como é que ela, que decreta a hora da morte, se pode dar a esse luxo? Medo? Ela, que sem pestanejar, é capaz de abrir um crânio com um bisturi; ela, que escava a vida e a morte dos orgãos abertos dos seus pacientes, com uma meticulosidade fria, distante, calculada e controlada; como é que ela se pode descontrolar a esse ponto? Não, nunca o admitiria. Sabe que tem de lidar com o problema sozinha. É sozinha que o tem encarado, e aprendido a reagir. É o seu ponto fraco. Só não fica no calcanhar.
Não consegue ter relações estáveis. Aceita convites para festas, jantares, escapadelas para um quarto de hotel a meio da tarde, ou ao fim da noite, depois do jantar, num fim de semana; mas nunca, nunca, para dormir. Passar a noite com um homem, partilhar o sono com ele, é, afinal, mais importante do que fazer amor. É talvez o passo que distingue uma relação eventual de uma relação estável. Essa estabilidade, porém, não é para ela. Sabe que não pode dormir acompanhada. A hora do sono é a hora dos fantasmas acordarem. Ninguém a pode ver nesse estado, em que se encolhe como uma criança assustada debaixo dos cobertores até a tempestade passar. Porque passa, sempre, ela sabe. Não, isso é impossível. Isso seria desnudar-se completamente perante um homem; muito mais do que quando tira a roupa. Dessa nudez ninguém pode ser testemunha. Nem das suas lágrimas, nem do balançar ritmado com que tenta acalmar-se, como se sofresse de autismo. Fecha os olhos, e começa a contar baixinho, para dentro. O coração a galope, e os números a correrem, velozes, na sua cabeça. O peito a rebentar, o medo a subir-lhe pelas pernas e a saltar-lhe das órbitas juntamente com os olhos, e depois é o sangue que jorra, e vê os seus orgãos espalhados no chão, boiando na poça de sangue, e cerra os olhos com mais força para não ver mas a imagem persiste, teimosa. Já sabe que não vale a pena lutar contra ela, e então imagina que se levanta, muito calmamente, vai à cozinha buscar o balde e a esfregona, enche-o com água e deita-lhe uma tampa de cif, volta ao quarto e começa por recolher as tripas, o fígado, o coração, o pâncreas, a bexiga, o cérebro. Põe tudo dentro de um daqueles sacos do lixo, herméticos, como os de resíduos orgânicos, do hospital, e depois começa muito lentamente a passar a esfregona no chão. Vai demorar, a operação; precisará de despejar o balde com a água vermelha umas tantas vezes, e voltar a enchê-lo. Sabe, porém, que ao fim do, digamos, décimo balde, a angústia ter-se-à transformado numa água morna a bailar-lhe na boca.
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