quarta-feira, abril 20, 2011

Voz

Foi quando perdeu a voz. Queria gritar, queria falar, soltar um pequeno sopro numa palavra; nenhum som lhe saía da boca. Até o ar que expirava, subitamente, parecia não existir, e ser apenas uma miragem, um sopro de um vento distante que nos abandonou os passos há muito. Assustou-se, engoliu, aclarou a garganta; um catarro de séculos estava ali, latente, inerte, a travar-lhe a respiração. Pensou que sufocava. Mas não. O ar que nos entra nos pulmões não nos pede licença, flui como um rio, ao contrário daquele que nos faz vibrar as cordas vocais. Esse está cheio de intenção, e quando ela falta, não há nada a fazer. Estava muda, portanto. Durante muito tempo não disse uma palavra.
Foi lá, mergulhada naquele silêncio, que aprendeu a ouvir. Aprendeu a movimentar-se devagar, para que à sua volta os sons se tornassem mais claros, e não se imbuíssem da sua corporalidade. Aprendeu que aquilo que nos chega aos ouvidos, transformado em ondas sonoras, não é mais do que um suspiro ínfimo, que muitas vezes mal se ouve, e se perde, na frágil trajetória aérea. Aprendeu que só se pode ouvir realmente esse sussurro que acompanha as palavras quando não se tem boca para responder. E que as conversas, por serem como as cerejas, tantas vezes se deglutem e mastigam umas às outras, transformando o que se diz, e partilha, num bolo alimentar coletivo, que tem como função precisamente essa, a de alimentar. As palavras, os sorrisos, os olhares, as conversas. Conversar é saborear. Trocar palavras nas bocas. Quase tão promíscuo como beijar. E as minhas palavras têm um sabor diferente na tua boca, e nos teus ouvidos. E nunca saberás qual o sabor que têm na minha.
Quando não temos boca, limitamo-nos a ouvir. Não podemos saborear nada. Estamos presos à fragilidade de um som. E então os sons desmembram-se, ganham asas e cores e finíssimo toques celestias. Galáxias inteiras podem espreitar-nos de um único som. Galáxias inabitáveis, porém. Só habitamos o que podemos abocanhar, aglutinar. Encorporar.
Por momentos, pensou que ia ficar assim para sempre. Impronunciável. O corpo fechado, por fim. Intocável. Apenas os sons, e os gestos, e as imagens a chegarem-lhe de longe, e ela dentro daquela fortaleza tão frágil que era o seu corpo.
A vida, porém, também corre como um rio. As águas estão em constante movimento. E o movimento é o que nos salva da morte. A sua boca acabou por voltar à vida. Tão só uma questão de tempo, de músculos a trabalhar, da força do ar a arranhar as cordas vocais.
A voz, porém, nunca mais foi a mesma.

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