sexta-feira, julho 29, 2011

Lagrimário

Tá mau, hoje. Inda não verti minha lágrima. Não, não me sinto bem assim; parece que tenho a camisola do avesso, sabe? Ou os sapatos trocados nos pés. Hoje em dia ninguém dá importância a estas coisas. A bem dizer, nunca se deu a devida importância. Choramingar é coisa de criança. Homem que é homem e mulher que é mulher não chora, aguenta. Aguentam calados. Devia haver lugares próprios para deixar os olhos em água. Assim uma espécie de santuários. Não precisava de ser nada assim grande; umas guaritas, como as retretes, já estava. Ou então assim uns sítios remotos, no meio do mato, onde ninguém nos importunasse, para além das moscas, das abelhas e do canto dos pássaros. Agora assim não dá. Um cristão quer verter umas lagrimitas sem consolo e não pode. Ora porquê, porque fica mal. Ou talvez nem seja isso, vem logo meio mundo perguntando, então o que é isso, maria, porque choras? Ainda bem que as pessoas se preocupam, claro, não é disso que estou a falar; é da necessidade de chorar sem testemunhas, sem que ninguém nos interrompa nem faça perguntas. Chorar só. Ou gritar. Às vezes preciso, e fico aqui neste sufoco. Não posso. Tenho as crianças à minha volta, os vizinhos; os vizinhos vão pensar que estou maluca. Se calhar não. Sei lá! Chorar é uma coisa assim muito íntima para se fazer em público. Pelo menos para mim. E tenho cá dentro umas lágrimas muito antigas que não podem ser soltas assim à frente de qualquer um. De nenhum, melhor dizendo. Não, elas são tímidas, mas teimosas, muito teimosas. Exigem privacidade absoluta. Era. Isso. Uns lugares assim para chorar. Não precisava de ser nada de grande; umas casitas, assim do tamanho de uma despensa, já tava bom. Mas tinha de ser assim bem cuidado, pois. Umas cores claras, assim as paredes azuis clarinhas, assim umas pinturas, umas andorinhas, um rio, o mar, sei lá eu. Se fosse preciso a gente dava uma moedinha pra entrar. Nem custava nada. Ao menos assim podia verter minhas lágrimas descansada. Cinco minutos chegavam. Todos os dias, pois. Podia-se chamar a fonte da choradeira. Ou da consolação. Lagrimário? Isso é palavra complicada. O senhor é que sabe. Até se podiam engarrafar e vender como líquido milagroso. Não acredita no poder das lágrimas? Ora, é porque nunca chorou de verdade. Vá por mim, que não há remédio melhor para todos os tipos de maleitas. Mas não, tem de vir cá de dentro. Que nada, as lágrimas não nascem nos olhos, não senhor. O senhor nunca chorou de verdade, é o que é. Você é que precisava de um desses cubículos para desatar as vergonhas. As lágrimas vêm cá de dentro do peito, às vezes de bem do fundo do ventre. E só sobem aos olhos depois de afogarem a garganta. Sem garganta afogada não se chora nada; aquilo é só água estagnada que não lava nada. Ora essa! Um homem desse tamanho e não sabe o que é chorar! A gente vê cada uma!

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