quinta-feira, julho 28, 2011

Pequeno conto sobre a velha angústia

Os ataques de pânico têm voltado com frequência.
Já os conhece. Até os pode chamar pelo nome, como se fossem velhos amigos. Ou conhecidos. Uns mais íntimos, outros menos.
Às vezes é apenas um pensamento sinistro. Um pressentimento, melhor dizendo. Os pensamentos não trazem atrelados a certeza da sua veracidade absoluta. Ora então, um pressentimento. Uma certeza. A morte a aproximar-se. Cada segundo um passo na sua direcção. Sente-a chegar depois, pelo corpo. Primeiro é o coração que dispara, depois o peito que se encolhe, depois a garganta que seca, incapaz de incorporar o ar, depois a cabeça que parte, veloz, em direcção às nuvens. As tonturas. Os vómitos.
De outras vezes é ao contrário. O corpo em primeiro lugar. E só depois a certeza aterradora. A morte atravessada na garganta. Engasgada. Nem sai, nem vai para baixo.
Ela já sabia lidar com eles. Com os ataques. Tantos anos a aprender, a estabelecer uma relação, a conhecê-los. Sabia como evitá-los, como desviar-se, como fazer marcha atrás, inverter a direcção. Manter-se a salvo.
E agora? Parece que não sabe nada.
Recorda-se de conversas. Amigos e amigos de amigos todos reunidos, sentados no chão, pernas cruzadas. Por vezes eram só trocas de anedotas, de outras discutiam a profundidade e os mistérios do universo com humildade e veemência. Fumavam charros e riam por tudo e por nada. O mundo perdia os contornos e o mais ínfimo detalhe era motivo de gargalhadas convictas. Há que rir com convicção, pensava. Ou não. Porque às vezes o haxe, em vez de lhe mostrar o lado cómico da existência, entretinha-se a avolumar aquela angústia que nunca a largava, mesmo quando escondida no canto mais remoto da consciência.
Deixou de fumar. A angústia, essa, conteve-se. Ficou lá, qual animal selvagem domesticado.
Ela sabia lidar com o medo. E isso tranquilizava-a.
Ora numa dessas conversas, uma vez, um dos amigos de outros amigos falara daquilo. Assim, naturalmente. Estavam naquela idade em que partilhar intimidades insondáveis era a mesma coisa que partilhar mantas no inverno. Ou cigarros. Ou um lugar à volta da mesa. E ela ouviu, estarrecida, que esse amigo de outro amigo sofria do mesmo mal. E ela, que nunca falava disso - era um assunto só seu - também falou, dessa vez. Deixou-se levar. Abriu aquela porta, sem pensar.
E outro amigo, talvez perturbado com a conversa, dissera qualquer coisa como, mas vocês só pensam na morte? Vocês não gostam da vida? Não gostam de estar vivos?
E ela, sorrira para dentro, porque sabia, sentia a resposta pronta na ponta da língua. Nem precisava de pensar nisso. Sequer de ensaiar pensamentos, ou lógicas, ou palavras. Era tão óbvio. Era tão real.
É precisamente por gostarmos de estar vivos, que não queremos morrer. E que a ideia nos apavora. Só tem medo da morte quem ama a vida acima de tudo.
E esse sentimento, essas palavras, esse pensamento, chamem-lhe o que quiserem, é o mesmo que agora lhe afaga as entranhas, depois do medo corrosivo espalhar o seu veneno, incansável. Uma espécie de mantra. Só tem medo da morte quem ama a vida acima de tudo.
Talvez a vida não se possa amar. Talvez a vida só se possa viver, sem pensar muito nisso. Talvez o amor que alguns dedicam à vida esteja mal canalizado. Talvez devessem amar acima de tudo as pessoas, os lugares, os corpos, os pássaros, a luz da manhã, os caracóis lentos, as aranhas pacientes, as ervas, as flores, as árvores, o mar, os peixes, as algas, os céus, as nuvens, o ar que lhes entra nos pulmões.
Ou talvez não devesse amar nada disso, apenas a si mesma. Não dizem os entendidos que para amar o mundo e os outros temos primeiro que nos amar a nós próprios?
Ela sabe lá. Ela só sabe que tem medo. Às vezes nem sabe de quê, ao certo. E não, não é masoquismo, nem estupidez. É amor à vida.
A mesma vida que insiste em escapar-lhe dos dedos.
Isto, sim, talvez já seja uma ilusão.

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