Os ataques de pânico têm voltado com frequência.
Já os conhece. Até os pode chamar pelo nome, como se fossem velhos amigos. Ou conhecidos. Uns mais íntimos, outros menos.
Às vezes é apenas um pensamento sinistro. Um pressentimento, melhor dizendo. Os pensamentos não trazem atrelados a certeza da sua veracidade absoluta. Ora então, um pressentimento. Uma certeza. A morte a aproximar-se. Cada segundo um passo na sua direcção. Sente-a chegar depois, pelo corpo. Primeiro é o coração que dispara, depois o peito que se encolhe, depois a garganta que seca, incapaz de incorporar o ar, depois a cabeça que parte, veloz, em direcção às nuvens. As tonturas. Os vómitos.
De outras vezes é ao contrário. O corpo em primeiro lugar. E só depois a certeza aterradora. A morte atravessada na garganta. Engasgada. Nem sai, nem vai para baixo.
Ela já sabia lidar com eles. Com os ataques. Tantos anos a aprender, a estabelecer uma relação, a conhecê-los. Sabia como evitá-los, como desviar-se, como fazer marcha atrás, inverter a direcção. Manter-se a salvo.
E agora? Parece que não sabe nada.
Recorda-se de conversas. Amigos e amigos de amigos todos reunidos, sentados no chão, pernas cruzadas. Por vezes eram só trocas de anedotas, de outras discutiam a profundidade e os mistérios do universo com humildade e veemência. Fumavam charros e riam por tudo e por nada. O mundo perdia os contornos e o mais ínfimo detalhe era motivo de gargalhadas convictas. Há que rir com convicção, pensava. Ou não. Porque às vezes o haxe, em vez de lhe mostrar o lado cómico da existência, entretinha-se a avolumar aquela angústia que nunca a largava, mesmo quando escondida no canto mais remoto da consciência.
Deixou de fumar. A angústia, essa, conteve-se. Ficou lá, qual animal selvagem domesticado.
Ela sabia lidar com o medo. E isso tranquilizava-a.
Ora numa dessas conversas, uma vez, um dos amigos de outros amigos falara daquilo. Assim, naturalmente. Estavam naquela idade em que partilhar intimidades insondáveis era a mesma coisa que partilhar mantas no inverno. Ou cigarros. Ou um lugar à volta da mesa. E ela ouviu, estarrecida, que esse amigo de outro amigo sofria do mesmo mal. E ela, que nunca falava disso - era um assunto só seu - também falou, dessa vez. Deixou-se levar. Abriu aquela porta, sem pensar.
E outro amigo, talvez perturbado com a conversa, dissera qualquer coisa como, mas vocês só pensam na morte? Vocês não gostam da vida? Não gostam de estar vivos?
E ela, sorrira para dentro, porque sabia, sentia a resposta pronta na ponta da língua. Nem precisava de pensar nisso. Sequer de ensaiar pensamentos, ou lógicas, ou palavras. Era tão óbvio. Era tão real.
É precisamente por gostarmos de estar vivos, que não queremos morrer. E que a ideia nos apavora. Só tem medo da morte quem ama a vida acima de tudo.
E esse sentimento, essas palavras, esse pensamento, chamem-lhe o que quiserem, é o mesmo que agora lhe afaga as entranhas, depois do medo corrosivo espalhar o seu veneno, incansável. Uma espécie de mantra. Só tem medo da morte quem ama a vida acima de tudo.
Talvez a vida não se possa amar. Talvez a vida só se possa viver, sem pensar muito nisso. Talvez o amor que alguns dedicam à vida esteja mal canalizado. Talvez devessem amar acima de tudo as pessoas, os lugares, os corpos, os pássaros, a luz da manhã, os caracóis lentos, as aranhas pacientes, as ervas, as flores, as árvores, o mar, os peixes, as algas, os céus, as nuvens, o ar que lhes entra nos pulmões.
Ou talvez não devesse amar nada disso, apenas a si mesma. Não dizem os entendidos que para amar o mundo e os outros temos primeiro que nos amar a nós próprios?
Ela sabe lá. Ela só sabe que tem medo. Às vezes nem sabe de quê, ao certo. E não, não é masoquismo, nem estupidez. É amor à vida.
A mesma vida que insiste em escapar-lhe dos dedos.
Isto, sim, talvez já seja uma ilusão.
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