quinta-feira, agosto 28, 2014

História sem memória

Não sei como me chamo, nem onde nasci, nem quantos anos passaram desde esse dia. Do tempo anterior a ter chegado vislumbro apenas uma névoa cinzenta, através da qual tento espreitar sem êxito. Perdi o rasto aos dias: num minuto cabem tardes inteiras. Como eu, há muita gente estendida nas inúmeras macas espalhadas em redor.

Tenho a cabeça apoiada numa almofada de palha húmida que cheira mal. A cabeça é a única parte do corpo que me sustenta. O resto – o tronco inchado, a bacia, as pernas cortadas acima do joelho e o braço direito – mal os sinto, estão sempre dormentes e não me obedecem.

As minhas duas pernas e o braço esquerdo de vez em quando vêm visitar-me de noite; o braço, coitado, atrás daquelas duas apressadas. Era assim que eu andava, sempre a correr de um lado para o outro. Adorava dançar, disso lembro-me bem, e até diziam que eu seria uma grande bailarina. Pouca sorte. Ouvi as mulheres que vêm dar-nos de comer dizer que pisei uma mina. Não sei o que é; só me lembro da avó Mina que contava estórias de bruxas e duendes aos meninos lá da rua.

Mas estava a contar-vos das visitas do meu braço e das minhas pernas, é através deles que tenho notícias da minha família e de outras coisas que entretanto esqueci. Vêm todas as noites, entram pela porta e começam logo a falar como se eu já estivesse acordadíssima à sua espera. E estou mesmo, não sei se é uma espécie de pressentimento. Na primeira visita assustei-me, acordei com uma mão a abanar-me e, quando abri os olhos, vi que o braço que a segurava não era de ninguém, pensei que fosse um fantasma e dei um grito.

«Acalma-te, ninguém te vai fazer mal. Então, já não nos conheces?»

Olhei a medo e reparei num par de pernas que saltitava em ritmos ondulantes de serpente, numa dança que logo reconheci como minha. Não conseguia dizer nada, o susto e o espanto petrificavam-me as palavras no peito.

«Somos nós, já não nos conheces? Não dizes nada? Viemos de tão longe só para te ver, e nem nos cumprimentas?»

Lá estendi como pude o braço que me sobrava, ao que a minha outra mão respondeu prontamente, sacudindo-me os ossos com uma energia incrível. Como é que consegue?, pensei, se para mim – com cabeça, tronco e membro – qualquer gesto é um martírio e pesa toneladas. Engraçado foi cumprimentar as pernas, que me estenderam os pés e logo fugiram, dando risadas de súbitas cócegas.

Explicaram-me que quando alguém morre vai para o céu, ou, melhor, a alma vai para o céu, e o corpo vai para o sítio dos mortos-vivos. O que é isso?, perguntei. É um sítio onde estão todos os corpos daqueles que já morreram. Corpos ou partes do corpo, como no meu caso; e, quando acontece reunirem-se várias que cheguem para formar um novo corpo, lá se dá esse milagre da natureza. Só que ainda não encontrámos par, desculparam-se, e vimos-te aqui tão perdida da cabeça que resolvemos vir ajudar-te.

Foi então que me falaram dos meus pais e irmãos, que tinham sido mortos no último ataque à aldeia. Já nem me lembrava de que havia uma guerra; mas que desmemoriada estás, filha, disse então o braço, não pode ser, temos de te pôr a par de tudo. Com a conversa, lá me fui lembrando de algumas imagens ténues e de palavras soltas no vento, avisos para termos cuidado e não irmos brincar na rua porque era muito perigoso, havia os tiros e as bombas. Nós não sabíamos o que isso era, mas de vez em quando ouviam-se estrondos que metiam tanto medo, que nem era preciso a mãe zangar-se para lhe obedecermos prontamente.

Depois desse ataque em que morreu a minha família, aliás como quase todos os vizinhos daquela e de outras ruas, contou o meu braço, enquanto as pernas iam acrescentando detalhes aqui e ali, os homens armados tinham entrado pelas casas matando tudo o que vissem mexer, e só escapei porque me escondi dentro do cesto da roupa suja, na casa de banho. Fiquei completamente só. Fui para a rua quando o silêncio tomou conta da noite, pisando os meus pais e irmãos mortos e deixando atrás de mim o maior rio de lágrimas da minha vida. Não chorava alto, como é próprio das crianças, apenas derramava lágrimas mudas, que a dor geralmente não mata mas mói, dizia a avó Mina, porém, quando mata é uma enxurrada sufocante que nos engole a alma e a vontade de gritar. Andei durante muito tempo, sem saber para onde ir…

«Quer dizer que o pai, a mãe e os manos também lá estão nesse sítio dos mortos-vivos? E posso ir vê-los?»

Era a primeira vez que dizia mais do que três palavras de seguida e eles ficaram animados; desde que tinham chegado que as suas caras, ou melhor, os seus pés e as suas mãos denotavam certa preocupação, quem sabe se por verem o meu estado de mais perto, que lá de cima deve ser um pouco difícil apreciar o espectáculo.

«Não, só os corpos deles, então na escola não te ensinaram isso do corpo e da alma? No sítio dos mortos-vivos há apenas corpos, que é como se fosse o invólucro da alma, percebes?»

Não me lembrava sequer de ter andado na escola; todavia, se as minhas pernas o afiançavam, só podia ser verdade, os meus pés conheciam os caminhos que eu trilhara melhor do que ninguém. Ainda insisti, não faz mal, quero ir vê-los, nem que seja só aos corpos, em questão de matar saudades o olhar é fundamental e a imaginação faz o resto; só de pensar em ver a minha família o meu peito já se desassossegava, ainda fraco de mais para aguentar o cavalgar de tantas emoções. Por isso, quando o coração disparou caí para o lado, o tronco tombou e a cabeça bateu na parede, o braço ausente impossibilitado de amparar a queda. Aquilo nem doeu, comecei a rir e o braço e as pernas também, enquanto a mão me levantava a cabeça e a encostava de novo à almofada.

Verdade se diga, não me lembro da cara dos meus familiares, talvez por isso deseje tanto vê-los. Às vezes até parece que também fiquei sem cabeça, tal é o manto branco que se avoluma para lá dos olhos. O meu braço e as minhas pernas, empenhados em prosseguir com o relato, nem ligaram ao meu saudosismo. Talvez por serem uns desalmados, como me explicaram, porque estas coisas das saudades são mais da alma do que do corpo… Dizem eles.

Pelo que pude apurar logo nessa primeira visita do meu braço e das minhas pernas, na noite da tragédia vagueei pelos campos até pisar a tal mina, e mais tarde encontraram-me com o corpo reduzido a metade. Trouxeram-me para aqui, exactamente há dez meses. Estive inconsciente muitos dias, entre a vida e a morte. Quando acordei não me lembrava de nada. Só distinguia mulheres que se abeiravam de mim, cuidando-me das chagas abertas do que restava do meu corpo. Não compreendia o que diziam, como se a minha cabeça tivesse perdido o significado das palavras, juntamente com a memória. Durante dias seguidos não fiz outra coisa senão chorar. À noite não deixava ninguém descansar. Contudo, era rara a noite em que se dormia, pois todos gritavam e choravam; alguns porque, tal como eu, lhes doía algum membro inexistente. As mulheres atarefavam-se para nos acudir – eram poucas e nós mais do que muitos. A comida também escasseava, e no meio de tanta dor e desgraça acho que nos esquecíamos de ter fome e ignorávamos os roncos dos nossos estômagos, com o tempo íamos ficando fracos mas a fome desaparecia. Todos os dias morria alguém e chegava mais gente. Era um espectáculo horrível, pessoas a esvaírem-se em sangue e aos berros, outras meio anestesiadas, as feridas abertas deixando ver o interior do corpo.

Aos poucos fui ficando mais calma. Este lugar e estas pessoas já não me assustam, embora não fale, pois não me sobram forças. Nunca mais abri a boca, só quando recebo a visita do meu braço e das minhas pernas digo alguma coisa, até me chamam a mudinha por causa disso e dizem, ao princípio gritavas tanto, agora parece que te comeram a língua. Sorrio, assim um sorriso muito triste numa cara que nunca mais voltará a rir como dantes, e os meus olhos enchem-se de lágrimas sem eu querer. Então as mulheres abraçam o que resta do meu corpo e murmuram, pobrezinha, pronto, não chores. Às vezes, nos dias mais calmos, quando não chega mais ninguém e de repente se faz silêncio no meio de lamúrias e gemidos, uma delas canta para mim. Deixo-me embalar pela música e adormeço, enquanto lá longe, no sítio dos mortos-vivos, as minhas pernas e os meus pés começam a dançar ao ritmo da voz doce daquela mulher…

2 comentários:

Jao disse...

Com a informação diária da guerra distante pelo mundo adquirimos alguma insensibilidade pelo sofrimento que esta causa.
A tua escrita confronta nos com o drama do grande sofrimento humano que esta permanentemente provoca.

Gostei muito.
Beijinhos.

mariana teles alface disse...

Muito realista.
E continua a escrever.
Beijinhos