segunda-feira, setembro 15, 2014

O homem do xadrez

Ficava horas intermináveis sentado à mesa daquele café, tendo por única companhia um tabuleiro de xadrez. Jogava. Em silêncio, lentamente, como quem peneira a luz da tarde até esta se transformar em poeira fina de estrelas, lançada para cima do incêndio do crepúsculo. E assim o tempo passava, como passavam os burros no calor da estrada, lá fora, carregados de sacas a abarrotar de cereais e legumes, acompanhados por homens de idade curvilínea; ao mesmo tempo que a tarde se demorava nos pequenos remoinhos de vento seco que levantavam a poeira do chão. Jogava sozinho. Movia uma peça, e depois, com um suspiro, tomava a posição do adversário. Mas não se limitava a tomar o lugar do outro; aquilo exigia uma transacção plena de estados de alma. Para nos defrontarmos connosco próprios precisamos de vestir a pele do inimigo, dizia para os seus botões, enquanto os desabotoava. O xadrez é muito mais do que um jogo inocente de estratégias; o xadrez, é, acima de tudo, a essência da estratégia. Estratégia de quê?, ecoava-lhe o pensamento, e ele encolhia os ombros, sei lá, para o caso pouco importa; o que importa (e o peito dilatava) é a eficácia da estratégia. Ponto final.

Fazia estes diálogos consigo mesmo e sorria sem curvar os lábios, como se habituara desde sempre a sorrir. Hoje, se quisesse sorrir mesmo, um sorriso cravado nos músculos do rosto, a arrepanhar a boca, não conseguiria. Teria de fazer um sorriso forçado, daqueles que costumamos ensaiar ao espelho, e que nunca se comparam ao espontâneo, pois os músculos responsáveis por este são movidos por um reflexo involuntário. Desabotoado o casaco, despia-o, pousava-o nas costas da cadeira, e vestia o outro, o que repousava na cadeira à sua frente. Seguidamente, sentava-se nela, e estudava minuciosamente as peças dispostas no tabuleiro, enquanto se demorava a enrolar um cigarro (não fumava, quem fumava era o adversário). Então acendia-o com vagar, e puxava uma fumaça que o fazia soltar uma tossidela. E assim, completamente embrenhado no jogo e nas mudanças de campo, espalhava as horas no chão e ficava a vê-las rolar, como moedas lançadas no tampo de uma mesa. Não saberia dizer quantas; sabia apenas que, todas juntas, caberia nelas a vida inteira. Mas para ele a vida não era uma coisa inteira. A única coisa íntegra que ele conhecia (íntegra era uma palavra muito mais apropriada do que inteira) era a tão almejada estratégia.

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