segunda-feira, junho 20, 2005

CHEGADA

Quando aterrámos neste país cinzento, o tempo passou a andar de outra maneira. As coisas tornaram-se mais lentas, sentidas ao pormenor, como se os sentimentos se tivessem desdobrado e enchido a dimensão do espaço à nossa volta. A primeira coisa que senti foi a falta do sol. Lembro-me que só o vi espreitar, timidamente, atrás de uma nuvem escura e pesada para aí uma semana depois de ter chegado, numa tarde em que acompanhei a Juca a buscar os meninos à escola. E lembro-me de que, apesar de não ter sentido sequer o seu calor, a visão daquela luz aqueceu-me a alma por dentro, e o corpo, também, apesar de debaixo das roupas do inverno.

A escola... A primeira vez que vi a escola lembro-me de achar que havia demasiado lixo aos cantos, no chão. Havia muitas plantas e árvores junto à rede que circundava o perímetro da escola, e no chão, misturados com as folhas secas que provavelmente ali estavam desde o Outono, viam-se embalagens de batatas fritas, de sumos, garrafas de plástico, caricas, sacos... enfim, toda a espécie de lixo.
Procurávamos com o olhar mas não encontrávamos o tão esperado caixote do lixo.
Mas então, se não havia caixote do lixo, realmente...

Mas a escola era bonita. Consistia num conjunto de pavilhões, por cujas janelas se podia espreitar o interior das salas, com as paredes cheias de desenhos e pinturas, e as crianças sentadas nas suas carteiras, ou de pé entregues a qualquer actividade. Todos aqueles pavilhões comunicavam entre si, num labirinto complicado para quem não conhecesse. Havia portas para o exterior em todas as salas, e papéis coloridos colados aos vidros das janelas, que nos permitiam ver alguns dos trabalhos feitos pelas crianças.
Havia crianças de todos os cantos do mundo... e pais de todos os cantos do mundo também, claro. No grupo de pais que se formava cá fora, à espera que os filhos saíssem da sala, ouviam-se tantos idiomas quantas caras diferentes se viam.

Daí a menos de um mês aquela tornou-se na escola do David. Passei a fazer parte, eu também, do grupo de pais que se acumulava cá fora, tantas vezes debaixo de chuva, à espera da saída dele. O meu filho passou a vestir-se com as cores da escola: sweat-shirt vermelha e calças de fato de treino azuis (ao menos o uniforme não é muito rigoroso...). Nos primeiros dias andava um pouco triste, na segunda semana faltou no segundo dia devido a uma dor de barriga, falava muito nos amigos de Portugal e dizia muitas vezes que não queria ir à escola... Mas sempre foi, e aos poucos foi mudando, ganhando mais confiança, até que por fim já corria pelo jardim como as outras crianças, todos os dias de manhã, antes de o sino tocar e de formarem todos uma fila, cada uma para sua sala. O Diogo também o acompanhava nas corridas, e para mim era um bálsamo, começar assim o dia, a ver os meus filhos felizes e a correr.


Quando chegámos, o Natal estava em todas as portas, espreitava de todas as janelas, iluminava as paredes das casas em assombros de luzes de todas as cores. Nós não tinhamos casa, vivíamos num quarto minúsculo onde mal tinhamos espaço para nos mexermos, e à noite quando punhamos os dois colchões no chão para dormirmos os quatro, mal sobrava espaço para pôr os pés no chão.
Depois saímos desse quarto e fomos para outro, numa casa grande que estava ainda vazia de outros habitantes, onde tinhamos um quarto também para os quatro, um pouco maior, e onde podíamos usar a cozinha. No dia em que deitámos mãos à obra para limpar e arrumar as coisas ia tendo uma coisa: estava tudo de tal maneira imundo que é indiscritível. O fogão depois de alguma limpeza lá ficou utilizável, mas cheio de ferrugem e porcaria debaixo das bocas, o forno era mesmo para esquecer, nenhuma limpeza do mundo o deixaria próprio para assar ou estufar. A máquina de lavar roupa tinha tanto detergente misturado com água já em pedra agarrado à gaveta que tive de o raspar com um garfo e mesmo assim aquilo ficou horrível. O frigorífico estava a tombar para a frente e o estado de limpeza também era pouco recomendável... As cadeiras e as mesas eram de madeira e estavam velhas e meio a cair, tudo com uma carrada de pó em cima para embelezar.
Nem vou falar das casas de banho...
A única coisa simpática era o jardim, com um relvado a precisar de ser desbastado de um verde vertiginoso, onde à noite e às vezes de dia as raposas passeavam, olhos atentos à espreita de comida.
É verdade, nesta cidade as raposas abundam, passeiam de uns quintais para os outros, às vezes à noite percorrem os relvados escuros dos parques que por aqui também abundam, em correrias assustadas.
Mas a casa era fria, os aquecimentos eram a electricidade e só tinhamos um no quarto ligado, no resto da casa tinhamos de andar de casaco ou de camisola bem quente. E água quente, népias. Depois de uma semana percebemos que o prometido “somebody will come to repair the system” era apenas isso, uma promessa, em boca falsa.

Lá tivémos de fazer de novo as malas, desta vez para parte incerta. Era 30 de Dezembro e estava tudo fechado, aqui o país simplesmente pára entre o Natal e o Ano Novo. O rapaz da agência lá simpatizou connosco, e ajudou-nos a sair dali sem assinar o contrato, que entretanto aguardava a assinatura da dona da casa, que o queria reformular porque exigira um aumento da renda ao aperceber-se de que éramos uma família. Metemo-nos no carro dele e andámos às voltas, mas os poucos sítios que conseguimos ver ainda eram piores do que a casa onde estávamos. Já em desespero, lá fomos ver um último estúdio, em Lewisham, que naquela altura era o mais longe que até então já fora, e achei que íamos mudar para o fim do mundo. Mas não era o fim do mundo, era uma rua escura, cheia de mercearias e lojecas, de gente e de trânsito, e o estúdio ficava por cima das lojas, no topo de uma escadaria interminável. Mas não era mau, o sítio, e tinha boas condições. Um quarto que era a sala, uma cozinha, uma casa de banho, e um vestíbulo de entrada minúsculo.
Dentro do carro estava quentinho. Lá fora a chuva caía, lentamente e sem ruído, e o frio cortava. As pessoas passavam no passeio debaixo de guarda-chuvas. Dentro das casas, adivinhava-se calor, famílias reunidas, e o Natal acendia-se nas luzes de mil cores pelas paredes. Dentro do carro os meus filhos tinham adormecido, embalados pelo movimento e pelo calor. Eu continuava acordada e a chuva no vidro confundia-se com a lágrima que espreitava por entre as minhas pestanas. O David acordou a meio de algum sonho, olhou em volta como que a perguntar-se onde estava, e perguntou, “Mãe, porque é que não vamos para casa?” Eu respirei fundo, agora a lágrima finalmente tinha rolado pela minha cara abaixo, fechei os olhos e respondi, “Já vamos, filho, já vamos para casa”.

1 comentário:

Barroca Louca disse...

É muito complicado, tudo isso.
Parabéns.