é feita de pequeninos gestos que nos habituamos a desenhar, através do corpo, ao nosso redor. Todos os segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos. Até o ar, o espaço à nossa volta nos assentar como uma luva. Até nos confundirmos com ele. Até passarmos a fazer parte da nova paisagem, nossa também.
Gestos pequeninos, que nem os sentimos. Mas quando mudamos, ou voltamos ao que ficou para trás, estranhamos. Abrimos a torneira do lava loiça e esta é diferente, não se roda, puxa-se para cima como uma alavanca. Na casa de banho é a mesma coisa, e o autoclismo acciona-se carregando num botão em vez de puxar a alavanca. Os interruptores estão um pouco mais abaixo, são mais largos, permitem um gesto com a mão inteira para os acender. A cama aqui fica mais abaixo, o corpo tem de baixar mais para encontrar a macieza do colchão, e neste as costas descansam de forma bem diferente do que no outro, onde dormir se torna por vezes um exercício um tanto difícil para o corpo. Os botões do fogão pregam-nos toda a espécie de armadilhas, e parece que já não sabemos fazer um gesto tão trivial como acendê-lo.
A casa que encontrei em Alcochete parece um apartamento de um condomínio de luxo, se comparada com a casa onde estou em Londres. E, no entanto, quando transpus a porta, sete meses bem contados de ausência, não foi a largueza dos quartos e da sala, nem as janelas amplas, nem as portas grandes de madeira, algumas com painéis de vidro, nem as paredes brancas e os tectos duplos com lâmpadas incrustadas que me fizeram sentir em casa. Nem tão pouco as casas de banho de azulejos até ao tecto e loiças de boa qualidade e espelhos infindáveis onde se duplica o espaço e as imagens. Não, o que me fez sentir que estava a entrar na minha casa (na casa da minha família) foram as nossas caras num passado recente a espreitar de muitas molduras espalhadas pelas estantes. Nós os quatro, em momentos, segundos, flashs, a sorrir, bebés ao colo, rostos lado a lado, olhos abertos para o futuro. Foram os desenhos do David espalhados pelas paredes, em cima da lareira, folhas brancas com traços de cores vivas, uma casa, uns baloiços, o sol, o céu, e o nome dele desenhado em letras ainda incertas. Foram alguns riscos nas paredes feitos pela mão do Diogo quando nos apanhou distraídos e que lá ficaram, a sujar o branco das paredes. Foi o calendário que fizémos e colámos na parede do quarto deles, com os dias de Dezembro que faltavam para o pai chegar e para partirmos para Londres. Foi o cheiro da minha casa, que na altura nem senti, e que só reparei quando cheguei aqui, a Londres, a esta casa, que também é minha, nossa, mas que ainda não tem o nosso cheiro.
Ou talvez tenha. Ou talvez o nosso cheiro ainda esteja indeciso, a decidir se se cola, ou não, definitivamente, às paredes. Ou talvez os nossos dedos, os nossos braços, os nossos corpos, vão desenhando no ar, aos poucos, pequeninos gestos, todos os segundos, minutos, horas, dias que passam, e assim emprestem o nosso cheiro, a nossa alma, a esta casa, a nossa casa, e assim criem sempre nova a rotina dos nossos dias.
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