sábado, setembro 17, 2005

AQUELA PROFESSORA TAMBÉM...

foi um bocadinho chata, queixou-se o David em voz sumida.
- Mas porquê, filho?
- É que eu não queria brincar com nenhum menino, e ela disse que eu tinha de brincar com um menino, e eu queria brincar sozinho, e também não faz mal!
Sorrio, enquanto penso no que dizer.
- Ó filho, a professora estava a querer ser simpática, pensou que tu estavas triste a brincar sozinho...
- Mas ela não me deixou! E eu não queria brincar com nenhum menino!
- Está bem, mas como é o começo do ano e como tu entraste agora, ela pensou que era melhor para ti brincares com os meninos do que ficares sozinho... se não brincares com os meninos também depois eles não ficam teus amigos.
- Mas eu já tenho três amigos... Mas às vezes também brinco sozinho... E depois aquele menino também não ficou meu amigo, porque eu fui lá perguntar se podia brincar e ele mandou-me embora!
- Pois, mas também não podemos ser amigos de todos, não é? Mas para fazeres mais amigos precisas de brincar com eles um bocadinho todos os dias, não achas?
- Mas eu não queria, e a professora não me deixou! Também, aquela professora foi um bocadinho chata...

Quando oiço estas palavras, automaticamente reporto-me à minha infância. Lembro-me da minha timidez, da minha inibição, da minha solidão de alguns momentos. Eu era assim, tímida, às vezes também brinquei sozinha, mas não por opção, sempre tive alguma dificuldade em relacionar-me com as crianças da minha idade. Nada de mais, isso não me impediu de fazer amigos e de viver momentos de alegria. Mas os momentos de tristeza e desamparo também foram muitos.

Às vezes reconheço-me na timidez do David. E isso deixa-me um pouco angustiada, como se o meu filho estivesse predestinado a reviver as minhas dificuldades, como se realmente houvesse um gene da tristeza ou da timidez. Nada mais errado. Até porque, ao segundo olhar, vejo perfeitamente que ele não é de todo igual a mim. Até pode ter a mesma dose de timidez, mas a maneira de lidar com ela é completamente diferente. Ele é sociável e mais extrovertido. A sua timidez manifesta-se em força nos primeiros contactos, depois acho que a supera, mas leva sempre algum tempo para isso. O seu tempo.

E depois isto faz-me pensar. Porque raio é que queremos sempre que as crianças estejam alegres e divertidas, a brincar e a rir, e ficamos logo preocupados se as vemos sozinhas ou tristes ou sem voltade de brincar? Acaso andaremos nós sempre a rir e a contar anedotas e sempre bem dispostos? Não temos os nossos dias em que estamos chateados, em que não nos apetece sair da cama, em que parece que o mundo conspira contra nós, em que nos afundamos sem remédio no poço da nossa tristeza? E não terão eles o mesmo direito de expressar os seus sentimentos?

Aqui tenho de parar e confirmar que, de facto, há pessoas assim. Que parece que nunca estão tristes, que estão sempre a rir, que fazem de tudo uma brincadeira, que enxotam a tristeza como se esta fosse uma mosca incómoda. Parece, notem bem. Porque eu acho que isso é impossível. Não há ninguém que esteja sempre alegre e bem disposto, e se o aparenta, é porque com certeza essa é a máscara com que se defende de uma provável e monstruosa ruína interior.

E atenção, não digo ruína em tom depreciativo. Ruína no sentido de descalabro, alicerces destruídos, auto-estima afundada no lodo, depressão funda e a corroer todo o edifício frágil da estrutura da casa, neste caso da pessoa. Quem nunca chora tem é medo de se afogar no lago imenso das suas lágrimas, águas estancadas, em diques opressores construídos à pressa e no desespero atabalhoado do dilúvio pressentido e temido.

Neste aspecto também eu acho que a professora se calhar foi mesmo chata. Porque não deixar as criancinhas brincarem sozinhas, e escolherem como lhes apetece estar? Mas não consigo ficar muito tempo nesta posição. Compreendo perfeitamente a atitude dela, no princípio do ano, perante um menino novo que se isola. Compreendo e de certo modo até aprovo. Deixá-lo a brincar sozinho com um encolher de ombros podia ser uma atitude muito mais nefasta. Confrontá-lo com a sua dificuldade, mesmo correndo o risco de se estar a intrometer na solidão dele e de ser uma chata é muito mais humano. É um pouco como aqueles pais que nunca querem ser chatos, e deixam os miúdos fazerem tudo o que lhes apetece, desde que não corram perigo de vida. Se calhar nunca são chatos, mas os miúdos ficam com a sensação de que também não se preocupam com eles. Às vezes ser chato quer dizer que nos preocupamos, que estamos atentos, que nos importamos com o que eles possam estar a sentir, em suma, que não estamos indiferentes. Mesmo correndo o risco de nos tornarmos uns intrusos e de não acertarmos bem naquilo que se passa de facto com eles.

E se eles dizem, ela foi mesmo chata!, ainda bem. É porque são sensíveis, é porque se sentem livres para criticar, é porque começam a conviver com as partes menos agradáveis dos outros, é porque estão a entrar na realidade. Mas é melhor dizerem, que chata!, do que ficarem a sentir lá dentro, hoje brinquei o dia todo sozinho e ninguém reparou, e ninguém se importou com isso, e se calhar isso é normal e desejável. Não digo que brincar sozinho não seja normal e até desejável. A indiferença de quem gosta de nós e se preocupa é que já não o é.

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