Fora ele a primeira pessoa que me abrira a porta, e quando entrei naquela cave foi como se estivesse ali já há muitos anos. Nada me era familiar, mas tinha a sensação de pertencer àquelas paredes. Depois foram as conversas enormes sobre o partido, quem eram e o que pretendiam, e a ideia do jornal, e eu a achar tudo uma maravilha. Finalmente, uma coisa onde posso fazer tudo o que desejo há tanto tempo, escrever, conviver com pessoas de quem gosto, amigos. E oxalá gostem de mim. Sempre o meu velho fantasma a preseguir-me.
À porta da sala dele lia-se "reservado o direito de admissão". Por prudência, fiquei à porta. Mas já o sorriso dele me esclarecia: podes entrar, está à vontade. Mais tarde, havíamos de nos rir muitas vezes quando alguns desconhecidos cruzavam a porta e ficavam com aquele ar perdido de quem não sabe o que há-de fazer, se entrar se ficar no mesmo sítio, e então demoravam-se imenso tempo a olhar os cartazes nas paredes. Mostraram-me fotografias, contaram-me velhas histórias e eu adorei tudo. Adoptem-me por favor, estou a precisar tanto de gente como vocês.
Acho que entrei definitivamente para o grupo quando fui entrevistar as crianças ao Fernão Mendes Pinto, e depois fizemos uma exposição na Torre de Belém com os desenhos dos putos. Colámos tudo nuns placards, e divertímo-nos a inventar outras brincadeiras, como um quantos-queres gigante e uns papagaios de papel. Vinhamos para a rua soltar os papagaios, e eu só me ria porque parecíamos dois putos. Quando eu disser corremos, e lá íamos avenida abaixo numa correria, mas aquela merda não resultava, o papagaio era pesado demais e não levantava. Depois foi a tarde passada com os miúdos, montámos a exposição no relvado, e pusémos no chão uma folha enorme de papel cenário para eles pintarem à vontade. O pessoal da escola de circo apareceu vestido de palhaço, foi demais. E na escadaria da torre, a correrem de um lado para o outro, lá estava ele e uma menina a tentarem em vão levantar no ar um papagaio de papel.
Depois houve um dia em que me espantei imenso quando descobri que ele era irmão da X, nunca os vira falarem-se, mas lá estavam alguns traços do rosto a confirmarem o facto, só o azul dos olhos dele era inimitável. Mais tarde percebi a confusão de sentimentos que pairava no coração daqueles dois irmãos, tão iguais e tão diferentes, que haviam imposto o silêncio entre eles sabe-se lá porque passado doloroso. Eles não se falam, dissera-me a C. Assim, naturalmente, já ninguém faz essa pergunta. E eu a tentar imaginar um motivo, essas coisas deixam-me sempre a pulga atrás da orelha. Depois surpreendi-lhe alguma emoção na voz quando falava na irmã, sempre de um modo despercebido, a minha irmã ofereceu-me este cachecol no Natal, era mesmo destes que eu queria, dizia todo orgulhoso, a sorrir. E a emoção a crescer-lhe na voz.
Sempre me fascinaram as pessoas que sabem estar com elas próprias, e se estão nas tintas para o que os outros pensem delas. São o que são e pronto. Era assim que ele era. Quando estava chateado ou quando não lhe apetecia ver ninguém, não se esforçava, não inventava temas para conversa, apenas nos presenteava com um silêncio gélido e uma cara ausente. Mas isso eu também gostava nele. Apreciava a sua sinceridade, a sua frontalidade. E depois quando se ria e contava histórias que nos faziam rir nós sabíamos que ele estava ali, connosco, entregue ao momento. Era daquelas pessoas únicas, que sabemos não serem iguais a mais ninguém. Junto dele sentíamos que a vida já tinha valido a pena, pelo menos para o conhecer. Era daquelas pessoas que dão cor aos nossos dias, que nos dão na sua companhia um sabor muito especial à amizade.
E depois naquele dia da vigília em Alcochete... Eu ainda mal os conhecia e estava tão constipada que tive a ousadia de dizer que talvez não aparecesse... o que eu fui dizer! Isso é psicológico, dizia ele. Queres ver? E subiu para o palco, improvisou um tambor já não sei com quê e começou numa voz cavernosa: vamos aqui fazer uma dança para te curar da constipação... E às tantas estávamos os dois mais o J em cima do palco, a dançar à volta de uma suposta fogueira, e a dizer uh!, uh!, e acabou tudo numa grande gargalhada. Quando à noite cheguei à estação dos barcos chovia a potes e lá estava ele sentado num banco, encafuado num impermeável azul, com aquele sorriso que sempre lhe conheci e um cachimbo na mão, os cabelos ainda húmidos pegados à cara, e a primeira coisa que me veio à cabeça foi a chuva e a dança, e disse-lhe, afinal estou na mesma e caiu esta carga de água, se calhar enganámo-nos nalguma reza, e desatámos a rir. Depois chegou o J e ficámos para ali a dizer parvoíces sobre a rapariga que estava sentada num banco perto de nós, vais ver que ela também vem connosco, deve ser alguma amiga do S, dizia ele. A sério, o S tem muitas amigas e convida sempre pessoal para estas coisas e depois prega uma seca de meia-noite às pessoas. Ah ah ah! E lá chegou o S e era mesmo verdade, olhem, esta é a C, e sorrimo-nos todos com um ar entendido, e eu mal sabia que acabava de conhecer aquela que nais tarde seria a minha comadre sabe-se lá porque destinos.
Depois a sede passou a ser a minha segunda casa, e pelos vistos a dele também, pois estava sempre lá. Passámos imensas tardes a recortar notícias de jornal para o arquivo, e a maioria do tempo a ler notícias sem pés nem cabeça que não interessavam para nada e a rir que nem uns parvos. Mais tarde achámos cumplicidades no Diálogo do Vento e do Mar, aquele livro que eu adorei e que espantosamente quase ninguém leu, mas ele tinha-o, andava com ele no bolso do kispo, a capa já muito enrugada e as páginas igualmente marcadas, e dizia, com aquele ar meio a sério meio a rir, só mesmo uma estudante de psicologia para entender este livro.
A última vez que o vi ele ia fazer 20 anos, já há tanto tempo que não nos reuníamos todos na sede, ficámos a noite toda numa algazarra. Primeiro ofereci-lhe o raminho de flores que a minha amiga fizera questão que eu trouxesse, olha, isto é da L, eram meia dúzia de florzinhas já meio murchas, e ele soltou uma gargalhada sonora. Nessa noite e em muitas que se seguiram recordei todas as tardes que passáramos juntos a distribuir propaganda, a vender crachats e autocolantes, a montar a banca nas ruas, a correr atrás dos chapéus de sol quando o vento estava mais forte, e a rir perdidamente por coisas de nada.
Depois recordo aquela tarde, estava sol, era Abril, uma semana depois dos 20 anos dele, fui ter com o ZJ ao Rossio, era o primeiro dia do festival Amar o Tejo Viver a Paz, e fomos telefonar ao JP às cabines do Rossio. A ligação estava péssima e eu não ouvia nada do que me diziam do outro lado, T, fala mais alto, por amor de Deus, eu não quero ouvir o que me estás a dizer, tira-me deste pesadelo, o que é que se passa? O corpo caiu no chão, sem vida. O meu? O de quem? Já não estava cá, não estava em lado nenhum, que estupidez, chorar para quê, então porque não gritas, não morres também, acorda, estás viva, o que se passa, nem eu sei, sinto uma onda vir até me sufocar, não, não pode ser, por dentro rebentamos em sangue e por fora continuamos de pé, frescos, como se nada tivesse acontecido, que raiva, e o outro continuava em pé à minha frente à espera que eu falasse e as palavras não me saíam, dizer o quê, com que palavras, é confuso demais, não há palavras para esta dor, algo se partira e nunca mais seria como dantes. E eu não era capaz de dizer nada, não encontrava as palavras, não era capaz de sentir, parecia que estava a sonhar.
Depois, foi o espectáculo das flores que me impressionou. Eram tantas, um mar a perder de vista, um gigante a abraçar o ar de cores vivas, a tecer no ar lágrimas de todas as cores do mundo. Um festival de cores que chorava ali à nossa frente todas as lágrimas impossíveis. Um último adeus feito tapete florido, talvez voador, talvez sofredor, impotente, derrotado. E as flores eram os punhos, a força que doía tanto pela separação, o nó da garganta que se engolia a custo. Não volto a ver-te. Mas aqui tens estas flores para te mostrar o sangue que corre das minhas feridas, que é de todas as cores do arco-íris do sofrimento, da raiva, do desespero, da dor, da revolta pela tua perda. Uma ferida aberta, gigantesca, monstruosa, uma imensa massa de cores, a perder de vista. E cada vez crescia mais, e mais, e mais, assim como a nossa dor, em corpo, ali à nossa frente, carnaval triste numa despedida sem remédio.
"Amigo é coisa pra se guardar
debaixo de sete chaves
dentro do coração
(...)
Amigo é coisa pra se guardar
do lado esquerdo do peito
(...)
mesmo que o tempo e a distância
digam não
mesmo esquecendo a canção
(...)
pois seja o que vier
haja o que houver
qualquer dia amigo
eu volto a te encontrar
qualquer dia amigo
a gente vai se encontrar"
Até lá, boa viagem.
(Este é para um velho amigo, com muita saudade. Só não sei se lá onde ele está conseguirá ler estas palavras... um beijo, meu amigo)
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