domingo, outubro 23, 2005

COMPARAÇÕES

Às quartas feiras de manhã faço trabalho voluntário num Playgroup, que é uma espécie de Atelier de Tempos Livres. Faz parte do curso de Childcare que estou a frequentar. As crianças têm entre 3 e 5 anos. O espaço fica num hall de uma igreja, enorme, como um ginásio, e ao fundo há um palco atravancado de materiais e brinquedos. Todas as manhãs são dispostas mesas de actividades ao longo do hall, que no fim da manhã se arrumam a um canto.

São inúmeras as actividades: pintura, desenho, caixa de areia, plasticina, cubos, jogos de encaixe vários, puzzles, a quinta, o cantinho da garagem, da casa, da leitura, o guarda-roupa, etc, etc.

Às crianças é dada total liberdade, tanto na escolha das actividades como no desenrolar das mesmas. Fazem o que lhes apetece, quando lhes apetece e como lhes apetece. Existe assim o mínimo de estruturação das actividades, e os adultos presentes limitam-se a supervisionar e a ajudar, outras vezes a participar nas brincadeiras.

Como o espaço é amplo, a manhã acaba quase sempre com os miúdos a correrem por entre as mesas, aos gritos e aos pulos, vestidos com os adereços do guarda-roupa, alguns com uma manta pela cabeça, numa excitação desenfreada. Depois chega a hora da leitura e eles não conseguem ficar quietos nem calados por mais de poucos segundos, pelo que são divididos em dois grupos para escutarem uma estória. E mesmo assim é difícil haver uma escuta interessada por parte deles.

Não sei se esta é a prática corrente aqui, mas também nas aulas do curso já ouvi a formadora dizer, com o ar mais natural do mundo, que as crianças com esta idade, entre 3 e 4 anos, ainda não têm a capacidade de ficar quietas a ouvir uma estória, no tapete. E isto deixou-me a pensar.

Em Portugal, acho que é prática em quase todas as creches haver o cantinho da leitura (geralmente também chamado tapete) e o hábito de ouvir uma estória começa muito cedo, geralmente por volta do ano. Lembro-me de quando o David entrou para o infantário da Pena, com 15 meses, nas reuniões a educadora explicar que todos os dias eles eram sentados no tapete para ouvir a tal estória. É claro que no início do ano pura e simplesmente não ouviam nada, ou ouviam muito pouco, pois ainda não eram capazes nem de prestar atenção nem de ficar sentados quietos muito tempo. Mas no fim do ano havia progressos consideráveis. Na sua maioria as as crianças já eram capazes de prestar atenção durante um tempo considerável, escutavam com interesse e permaneciam sentadas e quietas, dentro dos limites aceitáveis para a sua idade.

Depois na Cebe a prática era semelhante. Com 2 anos, a maioria das crianças fica sentada no tapete a ouvir a estória, e é uma actividade que lhes dá prazer. Isto não é uma disciplina imposta nem colada, é uma disciplina que se educa e que se desenvolve, e que promove a capacidade de atenção, percepção, compreensão, controlo dos impulsos e da frustração, isto só para dar alguns exemplos.

Não tenho experiência de educadora, mas acredito que esta seja a prática na maioria das creches. Quando o Diogo entrou para a Fundação, em Alcochete, acontecia o mesmo, o cantinho do tapete, a estória e as canções. Sempre vi uma grande preocupação na estruturação das actividades, isto, como é evidente, sem desprezar os tempos de brincadeira livre, que também são muito importantes (ou tão importantes).

Aqui há uns anos tinha uma opinião completamente oposta a esta: achava que as crianças deviam sempre ser deixadas livremente a brincar, entregues a si mesmas, e que isso desenvolveria a sua capacidade de impor regras e limites a si próprias. Hoje penso o contrário: as crianças precisam de limites e de estruturação exterior, para os poderem desenvolver no interior. E esta opinião consolidou-se na observação das crianças do Playgroup.

É claro que os miúdos se divertem, correm, riem, gritam, passam um bom bocado. Acho que também deve haver tempo para isto, mas acho estas brincadeiras mais apropriadas para serem feitas no recreio do que dentro de portas. Num espaço fechado este crescendo de excitação colectiva tem como consequência o caos completo: só não há cadeiras pelo ar porque se calhar são pesadas demais. Mas os brinquedos de vez em quando lá voam e aterram no chão sem que ninguém se preocupe muito com isso.

Com esta excitação toda, parece-me evidente que na hora da leitura as crianças não estejam em condições para ficar quietas a ouvir uma estória. É que esta capacidade tem de ser educada, e precisa de ajuda para se desenvolver. A creche deve ser um local de prazer, mas se se limitar a isso perde o papel pedagógico. Deve ser, acima de tudo, um espaço que ajuda as crianças a crescer e a desenvolver as suas capacidades. E isso, afinal, também dá prazer! Quando vejo aqueles miúdos irrequietos no tapete, sem conseguirem ouvir uma estória do princípio ao fim, penso naquilo tão importante que eles estão a perder: o prazer que se vê na cara das crianças quando estão interessadas na estória e isso as faz conseguirem escutá-la e manterem-se sossegadas. E é esse prazer que é o motor do desenvolvimento.

Claro que sem prazer e sem interesse nenhuma criança fica calada a ouvir uma estória. Mas é preciso que se perceba que esse prazer pode e deve ser desenvolvido, e precisa de ajuda para o conseguir, precisa de um contexto adequado, onde altos níveis de excitação se tornam incompatíveis com ele. É desta estruturação que as crianças precisam, e de um clima de afectividade e respeito pelo seu ritmo e pelas suas necessidades. Mas isto não significa de todo um contexto em que apenas as suas necessidades imediatas sejam satisfeitas de forma descoordenada e sem nexo. E, parece-me, é onde nos leva esta prática. Às vezes penso que o problema deste país passa por aí: é escravo das necessidades das crianças, mas de uma forma completamente desequilibrada, desadequada, desproporcional e desintegrada do seu contexto fundamental, que é a relação afectiva e positiva com os adultos. E, assim, acabam por não se respeitar verdadeiramente as suas necessidades...

Sem comentários: