sábado, outubro 22, 2005

DIAS JÁ DE OUTONO

Aqui já há muito que é outono, o frio entra pelas frinchas das janelas e arrepia-nos a pele por baixo dos casacos, os relvados estão pejados de folhas castanhas que voam com a ventania e da terra húmida desprende-se o cheiro da vida a fermentar. As folhas nas árvores começam a amarelecer, e ficam no meio do verde, pendentes, contraste súbito das cores da terra, até que o vento as leve pelo ar em voo picado para o chão.

O sol já se põe por volta das 18.30 e a noite prolonga-se quase até às 7. As manhãs são cinzentas, frias, molhadas pela chuva ou apenas pela humidade que paira no ar. Outras vezes os raios do sol rasgam o céu de nuvens e abrem-no em luminosidade cristalina num filtro de azul, a cor desmaiada e límpida a encher o espaço aberto da madrugada. O ar frio entra pelos pulmões e enche-nos o peito de cristais transparentes, pequeninos, de arestas súbitas que se cravam geladas na garganta.

O frio envolve-nos, deixa-nos mais cansados, prisioneiros e sedentários. Dentro de casa o calor convida-nos a ficar, como peixes num aquário, a nadar no oceano da quietude, na paz da leitura de um livro de cabeceira ou do jornal na mesa do pequeno almoço. Na saída para a rua, armamo-nos de casacos até ao pescoço, abrimos a porta para o vento nos cabelos e na cara de olhos franzidos e pestanas trémulas. No caminho de passos apressados respiramos o ar às golfadas e devoramos a atmosfera líquida pela boca ou levamos na cara a bofetada do sol entre as nuvens no meio das pingas grossas de chuva.

Às vezes no conforto do carro transpiramos debaixo do casaco apertado que nos tolhe os movimentos dos braços, e que a pressa não nos permitiu despir só de um gesto. Corremos debaixo de chuva ou de vento para a porta ainda aberta da escola, subimos os degraus baixos cheios de outros pés igualmente apressados, um beijo de despedida e um gesto como um rebuçado, até logo, querido, bom dia de escola. Descemos os degraus em correria ou então lentamente com uma mãozinha na nossa e umas pernas que dão passos pequeninos demais para a nossa urgência. Entramos no carro e saímos do carro tantas vezes e em todas batemos com o osso já dorido da bacia no volante, e soltamos o mesmo gemido previsível e evitável não fosse a pressa. Os minutos vagarosos, enganosos, afinal são como os pingos da chuva no vidro, súbitos e imprevistos.

Vamos, voltamos a sair, tiramos o cinto da cadeirinha mais uma vez, pegamos no corpo pequenino para o ajudar a sair, fechamos-lhe o fecho do casaco até acima e novamente o frio e o vento a entrar por debaixo da roupa. Entramos em casa e outra vez o aconchego do calor nos abraça. Soltamos o corpo do peso da roupa e um beijo e um abraço na despedida. A mamã vem logo, a mamã não demora.

Na volta os olhinhos cansados no banco de trás fecham-se, e a respiração pausa-se em profundidade e silêncio, e na chegada o peso daquele corpo já incomportável verga-nos as costas e os ombros por séculos de esforço. Deitamo-lo na cama e no meio dos sonhos ainda abre os olhos cansados de sono. São horas também da chegada da escola e ouvem-se vozes lá fora, pai e filho entram em casa e com eles mais um pouco de frio e vento pela porta aberta. Finalmente estamos todos em casa, enquanto lá fora o outono definitivamente estendeu os braços molhados pelos passeios e despiu de folhas os troncos escuros das árvores.

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