sábado, outubro 01, 2005

THE LORD OF THE FLIES

Uma ilha, um grupo de meninos sobreviventes de um acidente. Uma escalada de violência que termina com a morte de duas das crianças e com a perseguição assassina a um terceiro que só acaba porque surge inesperada a presença de um adulto, um homem fardado de camuflado, de metralhadora em punho, e atrás dele uma coluna militar em pleno treino marcial. O homem fita o rapaz que se desfaz em lágrimas aos seus pés, enquanto olha estupefacto o bando de rapazes quase nús e com as caras pintadas, empunhando lanças primitivas e com a surpresa a tomar conta do olhar carregado de ódio, e no meio da sua estupefacção só tem voz para perguntar, "What the hell is this?" Mas na sua mão, também ele segura algo que serve para matar. Ele é o retrato daqueles meninos - outra idade, outro contexto - mas a mesma realidade. O horror que se passou naquela ilha é mesmo o horror que se passa no resto do mundo - e aqueles homens fardados são uns dos principais actores neste teatro de guerra.

O tormento para aquele rapaz terminou nesse instante, mas o da humanidade continua. Nós somos esta humanidade, que gasta milhões a armar e a treinar exércitos e forças especiais de ataque à vida humana. A guerra é uma indústria, talvez a mais rentável da actualidade. As armas circulam impunemente, os exércitos proliferam, as guerras estalam e as bombas rebentam à nossa volta. E nós só nos apercebemos disso quando elas rebentam mesmo à nossa porta.

Este filme mostra-nos uma face macabra da realidade, e faz-nos olhar para o nosso fundo, para a nossa infância, para os nossos ódios, para as situações extremas que podem despoletar a nossa agressividade latente. Porque o que acontece com aquelas crianças é o que acontece há séculos com a humanidade. Perdemos a capacidade de sentir compaixão pela vida humana, pelo sofrimento do outro, e quando confrontados com situações extremas que despertam a nossa fraqueza e o nosso desamparo reagimos com ódio contra aqueles que sofrem e que choram à nossa frente. Foi isto que permitiu e permite que homens torturem e matem outros homens impunemente, sem sentir remorsos e sem culpabilidade pelos seus actos. Arno Gruen fala disto mesmo na sua trilogia de livros A Loucura da Normalidade, A Traição do Eu e Falsos Deuses.

O facto de tudo isto se passar com crianças deixa-nos a pensar. Estamos habituados a olhar a infância como a morada da ternura, do carinho, do amor. As crianças são puras e inocentes, e com um sentido de justiça apurado. Mas se pensarmos bem esta noção da infância é recente no tempo. O modo de olharmos as crianças tem evoluído, e a preocupação com os seus sentimentos e o seu mundo emocional surgiu há pouco tempo na nossa história. As crianças não são anjos nem demónios, são simplesmente humanas. Também odeiam e desprezam e sentem raiva como qualquer um de nós. Todos nós temos a capacidade de amar e odiar. Mas o que pode levar a que não sintamos qualquer compaixão perante alguém que sofre? A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro - a empatia - é o que nos abre a porta para os sentimentos dos outros e para os nossos. Mas isso não nasce connosco. Conquista-se, aprende-se, desenvolve-se, pratica-se. Pela vida fora. Desde crianças.

O Deus das Moscas é um Deus desligado da vida e do coração, um Deus sem alma, um Deus cego para os sentimentos e para as lágrimas, que continua a voar à volta do cadáver estendido na praia, indiferente à cor do sangue que leva a vida consigo em direcção ao mar. É o Deus que chafurda na lama e no esgoto da nossa existência, que se alimenta da nossa carne morta e putrefacta. O Deus das Moscas habita em todos nós, naquele lugar deserto e sombrio da alma onde fomos abandonados com o nosso desgosto e o nosso sofrimento, e com todas as lágrimas nas mãos para chorar. Naquele quarto escuro onde nos deixaram fechados com os medos mais horríveis. Naquelas horas em que o ódio nos envenenou o sangue e o calor nas veias. Em todos os lugares de desespero em que desejámos tanto que alguém nos viesse enxugar as lágrimas e apenas tivémos o silêncio de chumbo da ausência gelada. Naquele poço fundo de onde não conseguimos sair e de onde ninguém nos salvou. Naquele ódio enorme que sentimos crescer no peito por sermos pequenos e fracos e por precisarmos tanto, tanto, de quem nos virava a cara.

E continuamos, como um enxame de moscas varejeiras, a venerar Deuses da Guerra, a armar e a treinar exércitos, a permitir que uns quantos homens gastem milhões e vidas a prepararem-se para matar e a arrasar cidades e nações inteiras, se for caso disso. Curvamo-nos perante o Deus da Morte que nos salvará dos nossos inimigos, outros homens e mulheres como nós. Viramos a cara ao sofrimento e ao desespero de milhares de seres humanos vítimas da guerra, desde que não sejamos nós, desde que não seja no nosso país ou à nossa porta. Fechamos os olhos à dor e os ouvidos ao estalar das bombas. E continuamos na nossa vida de todos os dias, a correr em todas as direcções, sempre apressados, sempre sem tempo, sem sentido, sem nada. Como as moscas idiotas que esvoaçam à nossa volta.

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