quarta-feira, novembro 29, 2006

O MEU AVÔ E EU


Lembram-se?

Eu não me lembro da última vez que o vi, mas lembro-me bem da primeira vez que já não o encontrei. A primeira vez em que ele não me agarrou na cara com ambas as mãos para me dar dois beijos e dizer: "Adeus, cara linda!", como sempre fazia. A primeira vez em que não reconheci os seus olhos, nem eles tão pouco os meus.

Não há nada mais estranho no mundo do que não reconhecermos o olhar de uma pessoa que nos viu nascer. Ver os seus olhos olharem para nós, sem nos verem. Vê-los passearem, errantes, para lá de nós, como se não se detivessem mais nas coisas deste mundo, mas de um outro mundo, insondável.

Nessa altura estava em Évora e apanhei a camioneta para Estremoz logo de manhã. Já não ia a Estremoz há muito tempo. Meses, anos? Não me lembro. Nessa altura os meus passos tinham-se afastado dos caminhos antigos, familiares, e a distância que me separava da minha família não se media em quilómetros, mas sim em silêncios, amarguras, ressentimentos, mágoas. Mas não é assim todo o crescimento? Uma caminhada que nos leva para longe das nossas origens, dos que amamos, para assim podermos desenhar os passos do nosso caminho, questionarmos os pilares fundamentais da nossa existêmcia, emcontrarmos o nosso rosto e a distância afectiva que nos permite amá-los melhor, àqueles que sempre amámos, porque agora os vemos a uma nova luz, a luz que só se conquista em cada passo que damos para trás da infância, para a frente do futuro.

E, de repente, levei com uma valente bofetada na cara. O meu avô estava ali à minha frente, mas já se tinha ido embora deste mundo. Já não me reconhecia, já não reconhecia nada nem ninguém, não dizia coisa com coisa, falava sem parar e sem nexo, e o olhar dele, meu Deus! Não eram os olhos dele. Eram os de outra pessoa, que eu nunca tinha visto. Como é possível, um rosto que conhecemos tão bem de súbito ser completamente desconhecido. Realmente, o corpo é apenas um invólucro, como uma triste mortalha de cigarro. São raros os momentos em que nos apercebemos disso - talvez nestes casos e na morte, sem dúvida.

Fiquei sentada ao lado dele muito tempo, enquanto a minha avó insistia em trazê-lo para este mundo: "Então, não vês quem está aqui?", dizia ela, enquanto abanava a cabeça por, mais uma vez, se aperceber do seu estado. "Deixa, vó", devo ter dito, e ali fiquei, a vê-lo errar o olhar pela casa, falar sem parar coisas que eu não entendia e morder o cobertor que tinha nos joelhos com avidez. Nunca mais me esqueci desta imagem, dele a morder o cobertor, a enfiá-lo na boca como se o quisesse comer.

Acho que só nesse momento entendi o que era aquilo, aquela doença estranha que a minha mãe me anunciara, há uns anos atrás. Nessa altura dissera-me que isto ia acontecer, mas acho que eu não acreditara. Ou melhor, acreditara, como quem acredita que o sol um dia vai explodir e engolir o sistema solar. No fundo, ninguém acredita que alguém, algum dia, vá viver esse momento.

A partir desse dia habituei-me, mal ou bem, àquele olhar errante. Habituei-me a vê-lo definhar aos poucos. Habituei-me ao seu corpo cada vez mais débil, ao seu rosto cada vez mais cadavérico. Habituei-me? Não, que mentira. Apenas suportei. E nem sequer vivi todo esse processo com intensidade. No fundo, acho que me afastei um pouco, para poder continuar a viver, para poder guardar dele o melhor, a sua vida, a sua saúde, a sua alegria, a sua boa disposição contagiante, a sua honestidade às vezes quase ingénua. Das duas vezes o fiz, acho. E todos nós o fizémos, um pouco.

Todos, menos uma pessoa, ou duas, melhor dizendo. Sim, mãe, tu. E tu também, pai. Foram vocês que realmente os acompanharam nesse último troço da estrada, o pior, sem dúvida, o mais cruel, o mais sofrido. Aquele que toda a gente, se puder, evita, porque custa demais. E vocês aguentaram. Se calhar sem forças, se calhar desfeitos, se calhar com uma vontade enorme de fechar os olhos e fugir também, mas aguentaram. E ficaram. E nós, os que pudémos voltar costas aos piores momentos, os que pudémos fechar os olhos às vezes, os que tivémos algumas tréguas nessa batalha, só vos podemos agradecer por isso. Por terem tido a coragem que não tivémos, a força nos braços que não ousámos. Obrigada :)

3 comentários:

Anónimo disse...

Como é bom recordá-lo! Ainda para mais no dia dos seus anos, seriam 98... Como hoje me dizia o tio João:- Não conheci pessoa mais honesta nem mais bondosa que o nosso Pai. E é verdade, eu também não, é um prazer recordá-los, aos dois, todos os valores que nos transmitiram, tinham um coração enorme, distribuiram bondade por todos que com eles privaram, são um exemplo vivo cheio de encanto para todos nós. Desde que partiram não há um dia que passe que não os recorde, cada vez com mais saudade. Nunca podem ser esquecidos, nem nunca serão, pois o exemplo de vida que nos legaram é muito grande, muito forte, muito belo. Bem hajam! Estão no coração de todos nós! Beijinhos, muitos

Anónimo disse...

Que linda fotografia que aqui nos mostraste! Beijocas

Anónimo disse...

Há pessoas que nunca morrem, vivem sempre, no nosso coração!
Um beijinho.