segunda-feira, janeiro 29, 2007

1993

Outra vez, não. Ainda agora aqui cheguei e já é a quarta vez que me cravam um cigarro. Não tenho, é o último. Porra, tanta gente. Mal se consegue respirar. Vamos dançar, hoje quero pular até cair para o lado. Doem-me tanto as pernas, e o pescoço, que se lixe. Tantas luzes, tantas cores, tantos copos. Tantas caras conhecidas. E a música salta, enche a sala, e os corpos abandonam-se à deriva na torrente. Nunca tinha reparado que nestas salas escuras há tanta energia. Nem nos sorrisos que se trocam, entre cabelos despenteados e saltos, o ritmo, sempre o ritmo. É como se um laço gigantesco nos apertasse e unisse através da música, da dança, da voz aos gritos. E a cabeça à roda. O coração aos saltos.

Entre as cabeças e as luzes, aquele rapaz que eu adorava nos braços de outra. Que por sinal se atirou de cabeça e ele apenas abriu os braços depois de umas tantas tentativas que adivinhei frustradas. Adivinhei? Que mazinha, sei lá o que habita no coração dele! Nem no meu, quanto mais. Que merda. Porque é que os sonhos nunca podem florescer? Se calhar até já nascem sem braços, pronto. Foi só uma dor passageira. Nem chegou a sê-lo. Porque também não tinha muito bem definido o desenho daquela estranha empatia. Alguém de quem eu gostava muito. E adivinhava que podia crescer tanto, aprender tanto, caminhar a seu lado. Há pessoas com quem o primeiro olhar nos promete um mundo de coisas, e depois nada acontece. Há outras em quem a gente nem repara, e depois infiltram misteriosamente a sua cor única no nosso espectro secreto, e passam a pertencer ao nosso mundo. Era assim.

Mas será que o meu mundo podia ser o de alguém? No fundo sempre acho que fico a um canto.

Mas é dançar que quero, até cair para o lado. E dancei. Dançámos todos, todos irmãos, unidos pelo riso cúmplice de quem já passou para lá do patamar das primeiras palavras, dos primeiros gestos. Agora somos todos irmãos. Depois disto, unidos para sempre.

Que tristeza. Como passar do riso às lágrimas assim de repente?

Se tudo fosse programado, que fácil que era. Mas nunca fui muito crente dessas teorias que lêem os destinos irrevogáveis num só olhar, pela estrada sinuosa da palma da mão. No entanto, até a isso me rendi, quando aquela rapariga de olhos doces me pegou na mão e começou a dissertar sobre mim como se tivesse o meu coração em livro aberto, à sua frente. És rica, começou por dizer, e eu perdia-me de riso. Estou um bocado bêbada, não sei se vou conseguir fazer isto bem. E tens um problema, gostas sempre mais do que és gostada, e isso faz-te sofrer muito. Ó mulher, por amor de Deus, cala-te, o que vais dizer a seguir não pode ser mais verdade. Como podes tu adivinhar o deserto de sofrimento em que me afogo pelas dúvidas acerca do amor dos outros, há tantos anos, séculos, cala-te, que mais vais dizer sobre mim que eu já não saiba? Vais ter duas relações importantes. Não, não me ponhas agora dentro de um triângulo, que é tudo o que menos quero neste momento. Mas vai acontecer qualquer coisa na tua vida que vai trazer uma mudança radical. Não sei bem o que é, mas essa mudança vai tornar-te mais estável.

Quem espera, desespera; no entanto, sempre vivi à espera de qualquer coisa de bom que me mudasse, mas que nunca aconteceu. Que acabasse com as minhas inseguranças. Tavez um prenúncio? Prefiro não acreditar, as místicas não são o meu forte, mas em abono da verdade sempre vivi à espera disso. Melhores dias.

Mas agora o filme é outro, à minha volta vejo tantos caminhos que não sei por qual seguir. E se tudo estiver errado? Não, permanecemos insistentemente agarrados às certezas, como se elas nascessem das árvores todas as primaveras. E o resto logo se vê. Adiamos para amanhã, com um encolher de ombros, tudo o que nos ameaça o escrutínio ansioso de uma résta de equilíbrio. E eu que nunca gostei de caminhos certos. Paciência.

5 comentários:

Anónimo disse...

escreves tão bem! gosto tanto, tanto de te ler. e eu que tenho pensados tanto em coisas destas nestes últimos tempos...

papu disse...

Obrigada, Ana :)

é um texto velhinho, este...
;)

Alex disse...

Papu ....

Caramba. O ritmo deste texto é absolutamente fantástico. Está lindo. Adorei. Lembrei-me agora do que me disseram há dias sobre a tua escrita. És fantástica!

Da próxima vez que vieres a Portugal, deixa-me subir as escadas do sotão contigo ... quantos tesouros destes tens ainda escondidos? Quantos?


«Mas agora o filme é outro, à minha volta vejo tantos caminhos que não sei por qual seguir. E se tudo estiver errado?»

A pergunta, a que eu deixaria, era ... e se tudo estiver certo?

Beijo para ti !

LP disse...

Fantástico texto Papu! E tão actual...

Anónimo disse...

Papu, confesso que não te lia há imenso tempo...coisas da vida, sei lá!, e o que eu tenho perdido, moça...tenho perdido este teu mundo...beijo