quarta-feira, junho 20, 2007

Natureza

Um dia, já há muito tempo, sonhei que era um pássaro. Mas, perplexa, vi que os anos passavam e que não me nasciam as prometidas asas. Então, desiludida, tentei agarrar-me às verdades terrenas. E com tanta força o fiz que me cresceram, em lugar de braços, ramos longos de vertignosas sombras e raízes fundas de certezas inquietas nas solas dos pés. Fiquei ali, estática, enquanto à minha volta se abria o deserto maior que eu já vira: aquele que saíra de mim com a força de um vendaval. Esvaziei-me completamente de mim mesma até não me reconhecer. Depois, muito devagar, os meus ramos sentiram a brisa marinha e eu entendi que era tempo de me enterrar na areia, não para morrer, mas para me dissolver nos grãos quentes de todas as pedrinhas minúsculas do mundo, e correr, feita água, até ao oceano de onde nascera. Foi lá no meio das ondas que encontrei os teus olhos. Durante muito tempo pensei que tinham sido eles que me salvaram, mas enganei-me. Os teus olhos de peixe apenas abriram os meus e tingiram-nos do azul misterioso da vida, cor que escasseia no deserto de onde eu vinha. E não, não foram os teus braços, foram os meus. Foram os meus ramos ressequidos que ficaram a boiar à tona de água, gestos esquecidos e primordiais, agora inúteis, enquanto eu me volatilizava e me libertava das raízes cheias de terra escura. Foi assim que renasci, já há muito tempo. E agora, nos meus ouvidos onde ecoa o som dos búzios e das marés, oiço lá longe, muito ao longe, novas vozes no azul assombroso, por cima do oceano. Reconheço-as, reconheço-lhes as formas, as cores: é a minha natureza de ave, aquela que abandonei mas que nunca esqueci, a chamar-me, a acenar-me com as suas longas asas, as mesmas que sonhei para os meus braços desde o princípio do mundo. E é nos olhos do mar que se espelha o azul do céu; afinal, um não é o reflexo do outro, apenas em estados físicos diferentes? E lá, num pontinho minúsculo do horizonte infinito, onde os dois azuis se encontram e se misturam, onde as ondas tocam as nuvens e o ar se enche de chuva; é lá que a minha alma habita, e que a minha natureza, enfim, se liberta.

4 comentários:

Alex disse...

Lindo Papu, voei.

Alex disse...

Tenho uma história para te contar sobre uma certa menina do mar ...

foi ontém, a ver se consigo contar-ta hoje, amanhã vou-me embora.
beijocas

José Antunes Ribeiro disse...

Olá,Papu, boa noite:)
Sim, nós viemos do mar e perdemos as asas, é por isso que já não sabemos voar!...Bonito texto!
Um abraço!

Anónimo disse...

MUITO BONITO!