terça-feira, julho 10, 2007

Clarice Lispector

A escrita dela é orgânica. É a primeira palavra que me vem à cabeça quando penso num adjectivo que seja adequado para descrevê-la. Se é que é possível arranjar uma palavra que lhe faça justiça. Quando a lemos, mergulhamos num lago profundo onde as emoções mais antigas se nos colam à pele. Sentimos cada partícula, cada átomo, cada molécula do que ela descreve. Sentimos mesmo, uma coisa palpável, orgânica; daí a palavra. De repente mergulhamos nas palavras e elas levam-nos na sua corrente, velozes como um comboio expresso sem destino, a cabeça meio fora da janela a sentir o vento apoderar-se dos pulmões e o coração a querer saltar do peito. Nessa viagem alucinante vamos ao centro de nós. E, claro, no centro moram as emoções. Aquela teia colorida e densa que nos cercava quando a infância ainda dormia, morna, nos nossos ombros, e nos era leve nas asas e pesada nas mãos. Nesse tempo sentíamos o cheiro ácido das laranjas penetrar-nos até ao lume, e na boca do estômago desenhavam-se novelos de inquietações que não nos ensombravam ainda a existência com o peso dos espectros, apenas nos assaltavam em sobressaltos escondidos debaixo das camas e em fantasmas ocultos atrás das portas e dos cortinados, que, incrédulos, verificávamos com o susto pronto a saltar da boca. Nesse tempo o sol derramava-se poderoso e escorria-nos pelo cabelo nos dias intermináveis de verão, e os chapéus eram um martírio de suor que nos humedecia os sonhos e nos dificultava a respiração ansiada da liberdade. A liberdade, essa, era o vento nos cabelos e nos olhos, a comichão no nariz e o peito gelado pela humidade marítima que o beijo da ventania nos prometia nas tardes no cais. Ficávamos a ver o barco carregado de fogos fátuos desaparecer na escuridão, e acendíamos velas nas ondas negras longínquas, solitários barcos de pescadores ocultos no nevoeiro cego de orações e mau presságios, apenas adivinhados nas imagens sofridas dos santos nas igrejas, estátuas de carne com vestígios de sangue nos músculos de pedra. E aproximávamo-nos, a mão medrosa tocava a pedra fria e um arrepio de séculos rasgava-nos a ingenuidade e a inocência de alto a baixo, deixando pegadas de incertezas debaixo das pedras subitamente mudas. O silêncio das igrejas era sepulcral, e ao mesmo tempo cheio de ecos onde adivinhávamos os murmúrios de tantas almas caladas. O cubículo de madeira, com pesadas cortinas bordeaux parecia-nos uma casinha de bonecas, e tudo aquilo, toda aquela confissão permanente e acumulada deixava-nos um sabor a espanto na boca, e a curiosidade de mil segredos escondidos no cheiro a madeira milenar. Cá fora o sol derretia as pedras e lá dentro reinava um silêncio gelado e sinistro de tumba. Mas as nossas gargalhadas de criança sempre se espalhavam como palmas pelos ecos das paredes brancas, onde a luz do sol era proibida, onde as sombras desenhavam pensamentos ocultos na brancura do vazio.

A escrita dela aviva memórias, como se ateasse uma fogueira, e cada labareda, cada clarão vermelho cada vez mais quente, nos fosse entrando na pele. Voltamos àquela morada pálida, onde cada olhar tem o poder de dissecar o tempo e o espaço e abri-lo num leque de cheiros e sensações e luzes e cores e serpentinas, e cada partícula do nosso ser invade o espaço dessa escrita e imiscui-se nela, mistura-se na pele e no suor das personagens, encosta-se no seu ombro, ouve o bater do seu coração no seu. Voltamos a ser a criança que fomos, quando os olhos percorriam e se apoderavam do que viam; quando os olhos, mais do que ver, nos mostravam e nos iluminavam, nos projectavam e nos escancaravam a alma. Os olhos das crianças vêem o mundo não a três dimensões, nem a quatro, nem a cinco, mas a mil, a um milhão, a infinitas. É um olhar insaciável, que ainda não conhece as regras da percepção. É essa multiplicidade de prismas e de ângulos e de cores que ela nos devolve, intactas, como eram antes de as enterrarmos sob o manto da racionalidade. Quando a lemos, esquecemos os contornos da realidade e somos invadidos pelo poder de uma inteligência primitiva, uma coisa viva, como um coração a pulsar, o centro e a nascente dos rios e do sangue, a corrente sanguínea que sabe de cor os caminhos e os trilhos e os fundos e os abismos porque lhe conhece a cor vermelha, a força do fogo, o início da vida. Saber de cor é saber com o coração, é conhecer a escuridão e dentro desse túmulo escavar a terra húmida para que dê frutos e árvores de sábias raízes. E, finalmente, o milagre da luz, nas folhas verdes. Ou das palavras.

1 comentário:

Anónimo disse...

Papu, sei que o assunto não é "para aqui chamado..." mas.... não aguento e só "pa meter nojo", VOU PARA ALCOCHETE :p