quarta-feira, junho 18, 2008

Nomes

Há muitos anos atrás, metade da população do país era iletrada. Nesse tempo, as pessoas iam ao médico como quem vai em busca de um milagre. Começavam sempre por dizer:
- Sr. Doutor, estou muito mal...
O médico mandava-as abrir a boca e fazer "ahhhhhhh", depois auscultava-lhes os mistérios das costas e pedia-lhes que dissessem "trinta e três". Em seguida sentava-se à secretária, escrevinhava num papelote meia dúzia de hieroglifos e dizia:
- O senhor está bem, tem apenas uma amigdalite e os seios perinasais ligeiramente inflamados. Tome estes medicamentos três vezes ao dia, a seguir às refeições, e em cinco dias estará curado.
Nesta altura, o doente emitiria um som, uma espécie de monossílabo assustado, de significado intraduzível para os ouvidos do médico. E pensaria com os seus botões, que diabo quer ele dizer com aquilo dos seios? Será que me confundiu com uma mulher?
E depois, reunindo toda a sua coragem:
- Ehhh, o sr. Doutor, desculpe, mas... podia explicar-me melhor o que quer dizer com...
Ao que o médico, sorridente, responderia, enquanto lhe dava um caloroso aperto de mão, já à porta, ele metade dentro metade fora do consultório:
- É apenas uma constipação, não se preocupe.
E o doente seguiria pelo corredor, abanando a cabeça e murmurando para dentro:
- Mas porque diabo não falam eles como a gente?
Entretanto, o tempo passou. A outra metade do país alfabetizou-se, dois terços foram para a Universidade. As pessoas lêem mais e há toda a espécie de livros disponíveis no mercado. O uso da internet difundiu-se espantosamente. Pode consultar-se hoje uma biblioteca inteira na comodidade do sofá da sala.
Hoje já toda a gente sabe o significado de amigdalite e de seios perinasais. O vocabulário médico estendeu-se quase até às franjas da sociedade. Toda a gente é hoje versada em adenomas, carcinomas, neoplasias, gastrites, encefalites, meningites, glaucoma, hiperglicémia, cardiopatia, nevralgias, histeroctomias, e outros que tais.
Hoje, o doente chega e desabafa:
- Doutor! Acho que tenho um aneurisma cerebral! Tenho cefaleias ininterruptas, tonturas, perdas de audição e quase não me aguento em pé!
E o médico, depois de fazer um pequeno exame, profere:
- Tenha calma, homem. Você está é constipado. Tem o nariz e os canais auriculares de tal maneira obstruídos que espanta-me é que consiga ouvir alguma coisa. Além disso, está cheio de febre. Vá para casa, meta-se na cama e tome qualquer coisa para baixar a febre.
O doente pisca os olhos, receando não estar a ouvir bem.
- Constipado? Oiça, eu sei muito bem o que é uma constipação. Para saber que estou constipado não preciso de vir ao médico.
E abandonará o consultório, deixando o médico a meio de uma frase, enquanto abana a cabeça e murmura entredentes:
- Assim também eu sou médico, pois. E depois, passa para cá cem euros...