Há muitos anos atrás, metade da população do país era iletrada. Nesse tempo, as pessoas iam ao médico como quem vai em busca de um milagre. Começavam sempre por dizer:
- Sr. Doutor, estou muito mal...
O médico mandava-as abrir a boca e fazer "ahhhhhhh", depois auscultava-lhes os mistérios das costas e pedia-lhes que dissessem "trinta e três". Em seguida sentava-se à secretária, escrevinhava num papelote meia dúzia de hieroglifos e dizia:
- O senhor está bem, tem apenas uma amigdalite e os seios perinasais ligeiramente inflamados. Tome estes medicamentos três vezes ao dia, a seguir às refeições, e em cinco dias estará curado.
Nesta altura, o doente emitiria um som, uma espécie de monossílabo assustado, de significado intraduzível para os ouvidos do médico. E pensaria com os seus botões, que diabo quer ele dizer com aquilo dos seios? Será que me confundiu com uma mulher?
E depois, reunindo toda a sua coragem:
- Ehhh, o sr. Doutor, desculpe, mas... podia explicar-me melhor o que quer dizer com...
Ao que o médico, sorridente, responderia, enquanto lhe dava um caloroso aperto de mão, já à porta, ele metade dentro metade fora do consultório:
- É apenas uma constipação, não se preocupe.
E o doente seguiria pelo corredor, abanando a cabeça e murmurando para dentro:
- Mas porque diabo não falam eles como a gente?
Entretanto, o tempo passou. A outra metade do país alfabetizou-se, dois terços foram para a Universidade. As pessoas lêem mais e há toda a espécie de livros disponíveis no mercado. O uso da internet difundiu-se espantosamente. Pode consultar-se hoje uma biblioteca inteira na comodidade do sofá da sala.
Hoje já toda a gente sabe o significado de amigdalite e de seios perinasais. O vocabulário médico estendeu-se quase até às franjas da sociedade. Toda a gente é hoje versada em adenomas, carcinomas, neoplasias, gastrites, encefalites, meningites, glaucoma, hiperglicémia, cardiopatia, nevralgias, histeroctomias, e outros que tais.
Hoje, o doente chega e desabafa:
- Doutor! Acho que tenho um aneurisma cerebral! Tenho cefaleias ininterruptas, tonturas, perdas de audição e quase não me aguento em pé!
E o médico, depois de fazer um pequeno exame, profere:
- Tenha calma, homem. Você está é constipado. Tem o nariz e os canais auriculares de tal maneira obstruídos que espanta-me é que consiga ouvir alguma coisa. Além disso, está cheio de febre. Vá para casa, meta-se na cama e tome qualquer coisa para baixar a febre.
O doente pisca os olhos, receando não estar a ouvir bem.
- Constipado? Oiça, eu sei muito bem o que é uma constipação. Para saber que estou constipado não preciso de vir ao médico.
E abandonará o consultório, deixando o médico a meio de uma frase, enquanto abana a cabeça e murmura entredentes:
- Assim também eu sou médico, pois. E depois, passa para cá cem euros...
1 comentário:
É isso mesmo!
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