terça-feira, julho 01, 2008

A alma à porta

Às vezes entramos em casa e deixamos a alma à porta. Ela fica do lado de lá da janela, colada ao vidro, encolhida e aninhada no regaço da noite que se aproxima, a miar como um gato abandonado no frio invernoso das chuvas. De outras vezes, porém, abana o rabo e joga as patas no reflexo do vidro, convencida que há outra igual a si do lado de lá, e salta com agilidade felina e dá uma volta no ar, acabando estatelada no chão, no meio das ervas, a olhar os últimos raios de sol do dia, sem entender para que lado escorre a luz, se para dentro da noite ou para fora da tarde.
Talvez as paredes nos sejam estrangeiras, ainda. Ou não possuam aquela concavidade necessária para abrigar, aconchegar, acarinhar. O corpo também se retrai. O corpo só se entrega quando a concavidade das mãos perfaz aquela linha indizível onde se dilui a fronteira. A alma não tem fronteiras. Os limites são coisas da terra, da propriedade, das alianças. As almas não se aliam, as almas fundem-se.
Talvez os passos nos conduzam para fora de nós. Talvez, lá no fundo, no recanto mais côncavo do corpo, a alma aspire, afinal, a libertar-se. E o que é o corpo senão a morada da alma? Uma morada provisória, como o são todas as moradas. E, afinal, que desejo mais legítimo do que o de nos afastarmos de casa?
Há, porém, quem se vá e quem nunca saia de casa. E muitas vezes quem sai definitivamente é quem fica para sempre à janela, acenando lembranças (ou vendo passar sonhos?) e quem parte de mala e cuia é quem, por mais que ande, nunca sairá do mesmo sítio. Julgará que visita lugares exóticos, acreditará cruzar oceanos longínquos e desertos inóspitos, aventurar-se-à no coração das florestas mais densas e impenetráveis, e tudo aquilo em que tocar, tudo aquilo que os seus olhos alcançarem, mais não será do que a velha e triste amendoeira, de ramos dolorosament exaustos, cujas flores, na primavera, lhe enfeitam a única janela do quarto com aquele perfume que, de tão conhecido, já não cheira a nada.

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