terça-feira, agosto 12, 2008

Os nomes

Aqui, o calor enrosca-se-nos às pernas, como um gato molengão, a ronronar de indolência. Também nos abraça como um amante inquieto e urgente. Transforma a mais simples peça de roupa num martírio de suor e mal-estar.
As pessoas abanam-se convulsivamente e deitam bofes pela boca, naqueles poucos locais que não cederam à imposição do ar condicionado. Nesses, apesar de conseguirem respirar, espirram e pingam do nariz, enquanto os vírus invisíveis lhes atacam as fragilidades.
No restaurante o ar é pesado, morno, e desloca-se no espaço em espirais sucessivas e preguiçosas, empurrado pelas pás das ventoinhas do tecto. Na mesa em frente está sentado um casal, de costas, com uma criança, de frente, que nos olha num assombro de tranças loiras e do azul do mar a espreitar das íris muito abertas. A mulher é morena e tem a pele dourada pelo sol. A pele dela parece ter a suavidade da seda. Os cabelos negros caem-lhe mansamente pelas costas. O rabo carnudo, espremido nas calças justas, parece querer saltar-lhe do abraço do cinto, e colar-se aos nossos olhos. Tentamos olhar noutra direcção, num pudor escusado, uma vez que só lhe vemos as costas, mas a imagem das nádegas apertadas espalha-se pelo espaço, como que disseminada pelas pás das ventoinhas, que continuam, tontas de tanto girar, o seu labor incansável. De outra mesa lá mais à frente chega-nos um ruído seco e exausto, como se um animal sem forças se arrastasse por uma gruta muito funda. Depois apercebemo-nos, de ouvidos incrédulos, que é uma tosse. Sim, uma tosse, como se a tosse pudesse ter existência separada do corpo de onde sai, e já não pudesse abrigar-se em nenhum peito são, como se apenas fosse um barulho nervoso e moribundo, o que resta de uma respiração ansiosa que há muito desatou as malhas da vida que animava.
Saímos para a rua e novamente o calor abrasador nos cai em cima com um peso de séculos. Estas pedras do chão já estão aqui há séculos. A rua, ao contrário do que seria suposto, está cheia de gente. É sábado, dia de mercado, é por isso. Ainda se vêem no rossio as bancas das frutas e dos legumes, as panelas e tigelas de barro alinhadas no chão, a poeira que pousa lentamente nos brinquedos e nas velharias. Apetece-nos ir lá vasculhar aqueles brilhos de cristais antigos, cadeiras de palha pintadas com cores alegres, bonecas antigas de porcelana com sorrisos debotados e olhos de vidro onde se esconde o fulgor do sol, mas o calor é como a corrente de um rio que nos empurra noutra direcção. Andamos nos passeios estreitos que dantes nunca utilizávamos (andávamos sempre no meio da estrada, bem no meio do alfalto onde agora passam os carros) e atravessamos as ruas depois de olhar para todos os lados, porque não podemos adivinhar de onde raio podem vir os carros. As sombras generosas das árvores afagam-nos a transpiração. Na praça de taxis vemos um homem com duas galinhas dentro de um saco, com as cabeças de fora. As cabeças das galinhas estão nervosas e assustadas, e cacarejam com fúria. Os homens riem-se, e ouvimos frases soltas. "Atão vê lá se as galinhas 'inda cagam o carro!..." Mais risos. O sol, novamente. No outro lado da rua, lá está a papelaria e livraria. Ainda conserva o nome, aníbal. Na verdade, sempre a conheci com outras caras atrás do balcão, do Aníbal apenas o nome. Mas hoje parece ainda mais estrangeira, talvez por causa do ar condicionado que me refresca a mente assim que empurro a porta estreita de vidro e mergulho no lago de frescura que fermenta no interior. Uma ilha de água no meio de um mar de areia e secura. Mais abaixo, está a loja do meu avô, ainda com o nome dele escarrapachado na frontaria. Prudêncio, Lda, dizem as letras. Os nomes mantêm-se. Os nomes, e aquele calor insuportável.

1 comentário:

Lelena Lucas disse...

Belo relato, bela escrita. Beijos dessas bandas de cá.